Com o chão finalizado e mapeado, faltavam os 16 altifalantes ainda à espera de serem suspendidos ao longo do teto. Pensámos que seria já tarde de mais para introduzir o berbequim na narrativa, mas dada a falta de tempo (e de vizinhos [reais, ou com vontade de reclamar do que quer que seja àquelas horas]) prosseguimos com o plano. Toda a cartografia desenhada no chão ajudou-nos - por entre símbolos que já eram a nossa língua franca - a conseguir identificar as zonas de maior incidência, assim como as mais afastadas, que também careciam da sua sonificação. Concluído o processo, aparece então o berbequim, depois entram os camarões e, já na fase final, os cabos de som, que felizmente tinham previamente sido seriados por tamanho, durante a tarde, pelo Rodrigo. Enquanto este terminava os preparos no teto, entre trocas de cabos para ver quais chegavam à coluna mais longe e se os que restavam chegariam por ventura às que estavam mais perto, a Sara criava 16 faixas no sequenciador 'Logic' e tentava identificar e determinar quais eram os bocadinhos de cada uma das 30 entrevistas que teriam de ir parar a cada um dos altifalantes. A sorte, ou feliz preparação prévia, é que ela tinha já singularizado cada gravação com o nome de cada pessoa e com uma cor diferente da próxima para conseguir distinguir manobrar tudo mais facilmente. Tinha também escrito num documento à parte todos os sítios no mapa onde não só constavam os dados geográficos referentes a cada uma das perguntas, mas também os sons e canções que cada um dos participantes tinha indicado. Assim foi ligando os sons e conversas a cada uma das colunas, uma a uma, até que o trabalho só se concluiu depois do sol já ter nascido… Já mesmo cansada e a morrer de sono, a Sara foi acordar o Rodrigo que ainda conseguiu dormir umas duas horas, e juntos foram fazer os últimos reparos no som, e na temporização de cada uma das entrevistas. Concluímos que as canções e memórias musicais teriam necessariamente de entrar uma a uma, e que só algumas entrevistas se poderiam ouvir simultaneamente. Ao testarmos a inteligibilidade dos conteúdos mais fundamentais, percebemos com agrado que por entre burburinhos e uma cacofonia de outros pequenos sons é então possível ouvir-se como foco principal mais uma entrevista do que a outra, mediante da posição que decidimos ter no espaço perante um ou outro altifalante e os símbolos adjacentes. Assim, as pessoas podem deslocar-se em direção à entrevista que lhes chama mais a atenção! Porém, nem tudo estava concluído e, depois de um pão com queijo e sumo de laranja, a Sara foi ainda escrever os nomes do participantes, assim como cada uma das cinco perguntas, na parede a Este, com a ajuda do Rodrigo, que usava outra vez as linhas coloridas e fita cola para obter as divisões necessárias da parede e ao mesmo tempo faze-las servir utilmente de régua. Por fim, e depois de um regador cheio de água fria pelo corpo abaixo, estava o trabalho finalizado. A Sara ainda pensou em se deitar um pouco, mas nisto toca o telemóvel com a Lília Mata do outro lado a perguntar se ainda havia tempo para uma entrevista antes da inauguração. Houve tempo depois do sono se ter entretanto inibido e as forças se terem renovado para um depoimento final. Lá passou a entrevista na RDP durante a mesma tarde para lembrar as pessoas do acontecimento e logo em seguida abrimos as portas, até ligeiramente antes das 19h, para a estreia de 'O Estado das Coisas'. Ficámos muito contentes por ver vários dos músicos entrevistados a entrar na PIPINOIR, assim como amigos, conhecidos, entre outras pessoas interessadas em ver e ouvir o projeto. Foi muito bom ver o entusiasmo com que várias pessoas se moviam de coluna em coluna à procura de certas músicas e testemunhos, e também de ouvir a sua própria voz! Muitos disseram que o projeto era realmente diferente de tudo o que já tinham visto e houve interesse nas mais distintas particularidades do trabalho, desde o impacto visual do mapeamento cartográfico, ao lado mais antropológico e social ou musical. As vozes gravadas dos entrevistados confundiram-se muitas das vezes com os comentários eufóricos dos próprios em carne e osso, e o burburinho contínuo era só interrompido pelas vozes que entravam aqui e ali em cantoria, ou por uma música tocada ora no piano ora num cordofone. Fotografia de Sara Rodrigues Fotografias de Rui A. Camacho
O Virgílio Caldeira, que tinha sido apontado para ser o primeiro entrevistado da peça, acabou por ficar para o fim e foi mesmo o último a fechar a lista dos 30. Já em dia de preparações, apareceu logo de manhãzinha para dar o seu depoimento que, dado o seu percurso e cargo como diretor do DSEAM, foi naturalmente quase tão comprida como a do Rui Camacho e provou por certo ser também de grande relevância para o panorama musical regional. Situou-se quase sempre no Porto da Cruz, a partir de onde nos falou, por exemplo, sobre as recolhas musicais feitas a um senhor, que aos 80 anos, ainda cantava por inteiro a longa lenga-lenga da "Velha da Cacalhada". Chegou a imitar o som do búzio, usado muitas vezes como instrumento de chamamento nas terras onde cresceu. Descreveu também as atividades do projeto Flores de Maio, e admitiu que, com as suas responsabilidades administrativas, em cargos desde dirigente a maestro do coro, já não há tanto tempo hoje em dia para tocar nem cantar como gostaria. Precisamente por isso, foi também muito bom poder ouvi-lo! Depois das despedidas, e em vésperas da inauguração, foi tempo de nos debruçarmos seriamente sobre as últimas preparações. Lá por serem últimas, não quer dizer que se tratem de trabalhos curtos ou mesmo simples. Muito pelo contrário. A Sara quis que todos os levantamentos geográficos acumulados durante as entrevistas se depositassem no chão (agora branco) da PIPINOIR, mas não de qualquer maneira! Tudo teve de ser cartografado rigorosamente, à escala e segundo proporções certas! No decorrer executivo de tais tarefas, demos por nós com um departamento de cartografia e estudos demográficos montado à porta do espaço, em que o Rodrigo e a Helena, rodeados por mapas, canetas, compassos e cordéis, verificaram cerca de 150 lugares diferentes, recolhidos pela Sara ao longo das suas entrevistas. Com grande ajuda das mães Helena e Irene, o Rodrigo planificou e construiu uma grelha feita com linhas roxas e verdes (resgatadas da coleção da tia do Filipe Ferraz), para organizar a projeção física de toda a informação no espaço! Alguns dos dados chegaram ainda em mãos quentes, enquanto a Sara reouvia cada uma das gravações e ia disparando nomes de ruas, cidades, e países a serem adicionados à lista, que só crescia sem parar. Já à noite, e depois de mais de 10 horas a editar entrevistas (incluindo as do dia anterior, entre outras) a Sara começou finalmente a marcar o chão (até então imaculadamente limpo) com caneta permanente bem grossa. Cinco símbolos básicos combinaram-se para representar uma rica amalgama relacional entre pessoas, sítios e memórias musicais e fonológicas. Passadas algumas horas, o chão já não era o mesmo. Conseguimos agora ver claras diferenças entre a nebulosa cultural do centro do Funchal - com uma grande densidade de acontecimentos e memórias - e aqueles símbolos já mais dispersos que demarcavam do cerne tanto as zonas altas como a orla do mar. Notam-se já as constelações de hotéis que muito músicos descreveram como os sítios onde mais tocam e marcam-se também nas orlas da sala outros pontos, mais longínquos, relativos àqueles que entretanto emigraram. Raro ver-se, mas também aconteceu; Lisboa e Londres como periferias, lado a lado com os pontos iniciais de onde muitos imigraram, como a Venezuela, o Brasil e a Angola. Foi interessante notar também que muitos dos que referiram o mar como som mais marcante do Funchal, ou não são naturais da Madeira ou já não estão cá há muito tempo. É essa a violenta natureza da saudade, que só se manifesta quando aquilo de que se sente falta, precisamente deixa de estar presente. Passámos bem da meia-noite na crista de tal onda analítica, e as cenas dos próximos episódios entraram já nas primeiras horas do dia seguinte… Stills de gravação escolhidos por Sara Rodrigues
Em reta final, veio cá o maior número de músicos que já tínhamos recebido num só dia até agora. Foram sete! De veras um dia cheio de emoções e surpresas que incluíram participações inesperadas. O Emmanuel Mejía veio logo de manhã. Falou-nos de quando tinha cerca de seis anos ter começado a tocar percussão num grupo de música tradicional da Venezuela com o pai. Contou-nos que no decorrer de um ensaio, ele decidiu intuitivamente (e de forma não solicitada) pegar numa taça com sementes para acompanhar os adultos, e assim foi iniciado na banda. Atualmente gosta de ir para as zonas altas para poder estar com os amigos a tocar em improviso entre árvores e céu estrelado. Ficámos a saber que a Mariana Andrade prefere ser tratada pelo seu nome artístico - Mariana Pipocas - e que atualmente está no conservatório a estudar bateria jazz e piano clássico ao mesmo tempo! Cantou ainda a primeira música de infância de que se lembra. Com pequeno espanto nosso, ainda que curiosamente, cantou-nos ao pandeiro uma canção do projeto 'Nuno and the End', da autoria do seu pai Nuno Filipe. O Rodrigo (B. Camacho), apesar de ser mais conhecido pelas suas composições, revelou em entrevista passar o dia a cantar em improviso na sua casa em Londres, que tivemos que representar em modo de seta centrífuga a norte no mapa da peça. Tocou desde Mozart a Ravel no piano mas concluiu com uma queda bem acentuada para a música dos borracheiros que estranhamente tanto sente como sua. Imitou ainda a cacofonia que é a da família da Mariana (sua irmã) em hora de almoço. As músicas do Zeca Afonso foram, curiosamente, as primeiras que o João Viveiros começou a tocar, ouvido-as às escondidas num gira discos em casa dum amigo vizinho. Admite que só mais tarde percebeu que aquelas eram letras de intervenção política, o que pensamos ter vindo a influenciar fortemente o seu trabalho futuro, visto ter escrito letras com intenções próximas para a banda Algozes, da qual ele e outros dos entrevistados também faziam parte (como o Rui e a Helena). Dias anteriores tínhamos sucintamente conhecido a Natacha Gonçalves, que passara descomprometidamente cá pela rua, mas que nesse mesmo instante tínhamos convencido a participar. Hoje, falou-nos do seu primeiro momento de performance em público em que, no festival infantil do Funchal, cantou uma música que o pai tinha especificamente escrito não só para ela mas também sobre ela mesma. 'Quando for grande é que poderei ser artista!' cantava. Contou-nos ainda das suas primeiras memórias a ouvir os discos de vinil que o pai tinha dos Beatles (entre outros) e das lembranças de que tem de adormecer às horas que lhe apetecia ao som de free jazz! Ainda dedicou uma outra canção ao seu pai, José António Gonçalves, do qual tem muitas memórias e uma grande saudade. Foi num ambiente emocionado se despediu de nós, quando todos concordámos que às vezes as coisas que acontecem ao acaso acabam por ser muito especiais, isto é, se soubermos nos entregar aos momentos que a vida nos oferece pelo caminho. Já à noitinha chegou a Lidiane Duailibi que, sem sabermos, vinha acompanhada do Norberto Gonçalves da Cruz. Este ficou a ouvir a entrevista da Lidiane, que contou ter vindo para a Madeira do Brasil, procurando uma deslocação geográfica drástica. Contudo, a bossa nova ficou sempre consigo. Cantou com voz doce e falou-nos no seu projecto 'bossa livre', que tem com o Norberto, com o Nuno Filipe e com o Jorge Maggiore, em que usam as suas influências particulares para criar um mundo sonoro novo. Hoje em dia dedica-se também a sessões de terapia musical com mulheres, usado a técnica e a expressão vocal como meio para a expansão e libertação da personalidade e para a recuperação, ou mesmo construção e aumento da auto confiança. Depois desta viagem musical e geográfica, conseguimos com algum esforço trazer o Norberto para a cadeira do entrevistado, e ficámos a saber do seu percurso desde a Venezuela até cá, com memórias das partituras lindas que o avô tinha guardadas num saquinho de tecido e que tocava diariamente. Naquele tempo, diz, o avô ainda não tinha meios para usufruir dos métodos de reprodução de música gravada, por isso tocava-as. Falou-nos dos seus tempos de conservatório em Láquila, e de quando era solista no Teatro La Scala, mas concluiu dizendo que hoje em dia gosta mais da ideia de ser viajante do que turista ao navegar pela música, acrescentando que esta poderia ser uma atitude a ser adotada por muitos músicos. Disse que o silêncio também é importante, assim como o são a improvisação e a experimentação com vários instrumentos. Acredita que estas faculdades trazem ao músico outras liberdades. Pedimos-lhe que demonstrasse qualquer coisa numa guitarra que havia cá no espaço. Não sem alguma contenção, concordou em fazê-lo mas disse, após uma vigorosa e estonteante performance, que 'não é mesmo assim que se toca guitarra'. Nós cá ficamos deliciados com os seus dotes rítmicos. Concluímos com o som que acha ser mais marcante no Funchal, e de que gosta veramente; o camião do lixo a passar, deixando a solene notícia de que a cidade por fim relaxa e vai dormir. Stills de gravação escolhidos por Sara Rodrigues
Hoje foi o dia da 'Taxonomia' se despedir, deixando o espaço para "O Estado das Coisas". Com ajuda familiar, o Rodrigo montou então uma linha de desmontagem para conseguir enrolar as lonas, só depois de se terem retirado como espinhas as longas ripas que as seguraram todos estes dias. Uns pegavam e estendiam o plano, outros arrebitavam e levantavam agrafos, alguém passava logo a puxá-los com mais força, limpava-se todo o rasto deixado num abrir e fechar de olhos e, em cerca de uma hora, estavam as duas lonas em pé, na forma de uma monolítica torre branca no meio de um quarto branco. Foi um breve monumento ao bom trabalho de equipa que, quando organizado, é sempre uma delícia! Entretanto, a Sara ficou a editar entrevistas a ferro e fogo, que neste momento já eram mais de 20. Havia umas curtas e concisas, à volta de 10/15 minutos cada, enquanto outras chegavam quase a 1 hora. Foi interessante observar as diferentes personalidades em ação e notar com gosto as variações no entendimento que diferentes pessoas tiveram das várias perguntas, com umas a responderem prontamente com músicas preparadíssimas para serem cantadas, e outras a contar estórias longínquas com vários pontos de paragem e por vezes de cariz documental. Aos poucos, várias ligações entre os participantes começaram a emergir. Surgem primeiro as redes familiares e seguem-se os vários grupos e projetos anteriormente formados entre muitos. Deixando-se guiar pelos vestígios arqueológicos de tal fenómeno de gravitação ou mesmo de magnetismo cultural, a Sara foi conseguindo ligar as memórias de que cada um se foi lembrando a sítios comuns e a situações e vivências partilhadas. É interessante notar que estas concatenações, ao se formarem, nunca surgem sem uma certa individualidade nas variantes e focos particulares. Uns lembram-se de coisas que outros já esqueceram e, sendo o reavivar da memória por certo um ato criativo, os pormenores encontram-se quase sempre desfasados uns dos outros. Fotografias de Rui A. Camacho
Para quebrar a tradição, hoje não houve entrevistas nem workshops, por isso conseguimos finalmente dormir um pouco de manhã! O dia foi reservado para prepararmos a projeção do documentário "Faça-se Luz" da Cristina Vieira e do Nuno Filipe. A ideia do trabalho é aparentemente simples: perguntar a um grande número de músicos madeirenses "como se exportam músicos e música da Madeira?". Quanto ao resultado da experiência, a conversa já é outra. À ultima da hora, desce a correr o Nuno Filipe pela Rua dos Aranhas abaixo com um disco externo na mão. A estafeta trazia consigo o resultado do trabalho de meses, pesando cerca de 8 gigas acabadinhos de sair do forno, a tempo de serem projetados hoje pela primeira vez, na PIPINOIR, perante um público bem especial. Depois de ouvirmos os depoimentos de 54 músicos, com um intervalo devido ao calor (tanto climatérico como sociocultural), a audiência juntou-se para discutir as problemáticas e sugestões levantadas durante todo o filme. Apareceram vários tópicos como a importância das redes sociais, a qualidade do produto que se faz, os custos da mobilidade, a aposta nos concertos ao vivo, as estruturas de apoio local e regional, a falta de espirito cooperativista, as questões de género (já que apenas duas vozes de mulheres se ouvem por entre 54 entrevistados) etc. etc. Houve muito reboliço, confusão, dispersão e até gritaria. No fim, houve a sensação geral de termos chegado a algumas convenções sobre as fragilidades do sistema de produção musical madeirense. Ao menos, agora sabemos que há de facto um problema, mesmo que as soluções ainda não sejam nem muitas nem claras. Ficámos contentes com a abertura e a disponibilidade demonstrada tanto pela PIPINOIR como pela equipa do Teatro Municipal Baltazar Dias quanto a projetar o filme em várias sessões públicas. Esta ação pode realmente ser uma boa vitamina perante a saúde cultural da terra. No final ainda fomos continuar vivamente as conversas no Beer Garden ao pé da praia formosa, entre picados e pregos. Fotografias de Rui A. Camacho
Sexta-Feira foi um dia bem familiar. Primeiro apareceu o Diogo Castro, que integrou a nossa equipa, ajudando-nos a angariar participantes durante o projeto. Agora, foi a vez dele! Ficámos surpreendidos com a imitação vocal que fez dos Snarky Puppy, cujas estruturas rítmico-melódicas não são nada fáceis de reproduzir. Tocou também num pandeiro para demonstrar os seus primeiros toques em percussão, mas avisou-nos que não sabia mesmo tocar aquele instrumento; comentário muito preciso por alguém da área que sabe distinguir com precisão as diferenças tímbricas e as tradições técnicas dos mais variados (mesmo que perigosamente semelhantes) instrumentos de percussão. Antes de sair, deixou-nos as coordenadas para encontrarmos a rua onde vivia antes de se ter mudado para o Caniço. Lembra-se de ouvir nessa rua autocarros a passar pela estrada de baixo, visto que morava numa casa de beco, mais acima, de onde se podiam ouvir ainda os pássaros e sons menos agressivos. O Tozé Cardoso, que ainda não tinha feito uma gravação connosco, surpreendeu-nos com memórias de infância passadas em Angola, onde na altura, a mãe lhe cantava canções de embalar Angolanas. Falou-nos no seu percurso variado, traçado até pela biologia marítima, desde os dias em Tomar, até chegar à Madeira, altura em que enveredou mesmo pela música. Quem sabe foram mesmo a prevalência e a abundância da música na cultura da própria ilha que não o deixaram escapar. Falou-nos ainda do projeto Vértice em que poemas de autores Madeirenses são musicados, e deixou-nos com umas quadras accapella. A Mariana B. Camacho veio a seguir, já com muita pedalada depois de ter estado envolvida na documentação do projecto e ter assistido a uma variedade de entrevistas a fio. Foi interessante ver que nem assim se encontrava preparada para vasculhar todas as lembranças e escolhas que a Sara propunha. Foi bom ver a espontaneidade a surgir-lhe. Quando questionada sobre sítios onde mais tocava, mencionou os múltiplos projetos de que faz parte em Lisboa, assim como os géneros e estilos que canta e toca, desde a música renascentista com o coro de Câmara da Universidade de Lisboa, o Coro Gulbenkian até ao coro Miosótis (que ensaia num supermercado biológico do mesmo nome), a passar pelos Tochapestana (que denominou de 'hipster pimba') e ainda, claro, os Punk D'Amour, banda eclética, em que mistura tudo isto e que reavivou já há vários anos com o Filipe Ferraz. Cantou ainda uma música muito bonita feita por um padre da Escola de Évora, que tinha emigrado para o México, onde sofreu uma mudança no seu estilo de composição, que só ouvindo mesmo se acredita. Espampanantemente bonito! Por fim apareceu o já esperado Filipe Ferraz. Ofereceu-nos então uma canção dos Punk D'Amour, ao vivo e a solo, numa guitarra para destros, com claras influências subtropicalistas brasileiras, que nos disse serem as principais, suas e dos Punk D'Amour. Referenciou mais do que uma vez as câmaras acústicas naturais, um fenómeno particular da topografia madeirense, disse, em que entre um vale, de um lado às vezes se consegue ouvir e perceber alguém a gritar do outro lado, a quilómetros de distância, ficando-se com a sensação de que toda aquela volumetria é parte do nosso espaço sonoro íntimo. Escolheu o som da Helena Camacho para reproduzir, o das coscuvilhices na Paria da Barreirinha, fazendo-lhe o sítio no entanto lembrar outros tempos, em que à noite, depois da saída das discotecas, lá se juntavam vários drogados, em que a câmara acústica do espaço fazia também reverberação com um som muito característico. A Mariana e o Filipe ainda se juntaram a nós para ir ao mítico jantar em casa do Marco Fagundes que desta vez ganhou temática vegetariana. Lá encontramos a Diana Serrão que fazia anos e trouxe um frango para o jantar (chamado tofu) e o então desaparecido Jorge Maggiore. Como não podia deixar de ser, acabámos por fazer uma jam-session, com baldes, talheres e garrafas de vinho (que depois de vazias se encheram de água em diferentes níveis, para ajudar a variar a sonoridade). Entretanto, o Fagundes decidiu competir, munindo-se de um leitor de CDs, com que reproduziu em alto som uma missa cantada em alemão na íntegra, o que de forma alguma nos faria adivinhar acabarmos a noite ao som de música dos anos 80 com um teatro tresloucado no terraço, ajudado por adereços como chapéus variados, um berbequim, cabides, cruzetas, um sírio pascal e, por engano, uma lata de tinta de esmalte... muito divertido! Entre fotografias, encontrámos uma tirada pela maquina ao acaso, que achamos ter representado bem o serão. Still de gravação selecionado por Sara Rodrigues Fotografias de Sara Rodrigues
Chegou a mãe da Sara! Passando pelo aeroporto da Madeira, parece que veio do Porto diretamente para a PIPINOIR e ficou a assistir às entrevistas que tivemos hoje. Passaram por cá a Lília Mata, a Miliza Mendes e a Rosa Madeira. Mais à tarde, ainda nos apareceu a Lucilina Freitas, que trouxe os seus amigos Martinho Mendes e Sara Lambeau. A Lucilina, quis participar porque se interessou muito pelo nosso projeto mas durante a entrevista veio a aperceber-se que se calhar esta não era bem a sua praia, "isto é mais para músicos e pessoas ligadas à área", tinha avisado a Sara. Dizendo que não conseguia reproduzir nenhum som, nem dos fogos de artifício, que mencionou, ficámos no entanto contentes pela sua tentativa e ainda nos deixou com histórias interessantes sobre construir instrumentos em ateliers de artes plásticas na Casa da Cultura. O Martinho, assistindo à entrevista, já não se aventurou, mas tivemos no entanto o testemunho com inícios de canções em Francês da Sara que tinha acabado de chegar ao Funchal, vinda da Bélgica, para trabalhar no Museu de Arte Sacra. Já nos tinham avisado que a Lília era faladeira. Quando chegou, ela também nos disse o mesmo! No entanto admitiu ser difícil estar no lado de entrevistadora, sendo ela própria locutora de rádio. Do lado de quem está a ser entrevistado, a Lília não facilita e, com ela, a coisa funciona um pouco segundo os moldes "uma palavra, uma história", por meio de canções da tertúlia em que participa todas as semanas e a ajudam a manter estas lembranças. Assim, fomos levados por um mundo de memórias de outros tempos pelas realidades do Caniço de cima, tão acima do resto do Caniço de baixo que quase era Camacha. A entrevista à Miliza revelou-se uma caixinha de surpresas. Quase ninguém sabe, ou se lembra, mas descobrimos que a sua performance de uma música que fala sobre aprender a contar influenciou uma geração inteira. A canção infiltrou-se de tal forma pelas escolas da região, que qualquer pessoa madeirense, que hoje tenha entre 20 e 30 anos consegue, a pedido, cantar partes consideráveis desta música de cor. Falou-nos ainda do som circular dos autocarros e do chafariz na rotunda, perto da PIPINOIR e de sua casa, que pára, para nosso espanto, à meia noite de cada dia e a acorda sempre a meio do sono. Mais à frente na entrevista, gravámos boquiabertos uma secção em que nos explicou as peculiaridades da sua profissão. A Miliza é terapeuta da fala e baseia-se em conceitos e técnicas relacionados com memória, comunicação e musicalidade - todos inesperadamente comuns aos da peça da Sara - para trabalhar diariamente com pacientes com os mais variados problemas, incluindo Alzheimer. Depois veio a Rosa Madeira, com a sua presença poderosa, porém calmamente nobre. Cantou-nos uma música italiana do tempo em que tinha uma vez vencido um concurso que por conseguinte a levou a fazer parte da Orquestra Típica Scalabitana, onde veio a conhecer um grupo de músicos com quem ganhou e reteve o bichinho do fado. Para nossa surpresa, disse-nos que adorava Bob Marley. Já foi à Jamaica, à casa onde morara o senhor, e falou-nos dos seus dias bem passados na praia do Porto Santo a ouvir reggae. Cantou-nos também uma música original sua, que canta sempre com os Fado Funcho. Ficámos contentes pela Rosa nos ter convidado a ir ver o seu projeto no Four Views Oasis e tentámos ir vê-los mas a a coisa demorou muito lá no restaurante "A Lareira". A comida foi bem boa, no entanto chegámos tarde de mais… Ainda tivemos apenas a chance de dizer um sucinto "olá/adeus" à Lara lá do andar de cima! Contudo, a ida ao Caniço não foi em vão! Ainda passámos pelo antigo Boieiro à procura de um poço com rãs e de uma levada. Não havia água, nem rãs, mas ouvimos grilos, que gravámos, interrompendo a ganza de uns jovens lá da zona que ficaram a achar que estávamos com uma grande moca. Quatro marmanjos - O Rui, o Rodrigo, a Sara e a Irene, no meio da noite à procura de rãs num poço do Caniço. Seguimos logo para o Caniço de cima. Subindo pelas Eiras, por estradas bem estreitas e escuras, à procura de uma antiga casa da água. Ela já não existe, mas encontrámos o local. Obrigado Lília pela descrição fantástica! Era tudo verdade! Encontrámos tudo, ponto por ponto, incluindo a parte em que a estrada estreita descomunalmente por causa de casmurrices de proprietários campestres. Stills da gravação, escolhido por Sara Rodrigues e Rodrigo B. Camacho Fotografias de Sara Rodrigues
A recepção do projeto tem sido calorosa. As opiniões que nos dão são sempre diferentemente interessantes. A atitude geral é de uma curiosidade que nos agrada imenso, mas há um problema. "Onde é que estão todas as mulheres?". Na peça do Rodrigo, apenas um terço dos participantes foram mulheres. Agora, na peça da Sara, o mesmo parecia estar a acontecer - ou mesmo a piorar - em termos de igualdade representativa. Por isso, decidimos prestar mais atenção ao fenómeno, desafiando-o formalmente. Juntámos uma data de contactos, falámos com as pessoas certas e lá fomos descobrir que mulheres são de facto tantas (e fantásticas), mas que estas, por alguma razão, não nos aparecem logo no conjunto de contactos levantados intuitivamente, ou não são maioritariamente as primeiras a vir ter connosco para participar. Notámos que havia uma clara diferença na forma de cada um dos géneros se expressar socialmente no campo da música. Um certo "véu mágico" faz de muitas mulheres e dos seus trabalhos algo de misteriosamente translúcido. Em "O Estado das Coisas", uma peça mais baseada em entrevistas aos participantes, a Sara tem vindo a descobrir que há realmente um desnível de género nas questões de acesso a experiências de formação e desenvolvimento profissional. Os impedimentos manifestam-se desde a infância e perduram, produzindo consequências que se refletem de forma indeterminada pela vida de várias mulheres. Algumas das participantes já nos falaram de memórias (que em contextos normais não costumam vir ao de cima) sobre lhes ter sido negada uma ou outra oportunidade de se envolverem, neste caso, por exemplo, com um tipo ou outro de música. O caso mais comum é o de mulheres com irmãos que, enquanto estes andavam nalgum tipo de atividade musical (como a banda filarmónica da zona), estas tinham de ficar em casa a aprender as lides domésticas. Com uma atitude crítica e nada conformista perante o real estado das coisas, a Sara decidiu descobri-lo, assim como modificá-lo com a uma ação feminista positiva. Notámos que uma simples atenção dada ao problema, modifica a matriz comportamental da nossa comunidade perante o mesmo. A tendência agora é a de se encontrarem mulheres super interessantes cujo trabalho (e até existência) desconhecíamos. Aparecem-nos agora à PIPINOIR e dizem "estão à procura de mulheres? querem que fale com amigas minhas?". A diferença em número talvez não fosse assim tanto o problema. Este, sim, vive mais no silêncio que se cultiva cada vez que uma grande injustiça se disfarça de pequena casualidade. Hoje tivemos a Lídia Araújo, a Marta Capelo e a Helena B. Camacho. A Lídia, da Ponta do Sol, mas com memórias vívidas da sua infância na Venezuela, revelou-nos a distância que mantém do mundo sonoro funchalense. Não sem algumas reservas quanto à sua performance, guiou-nos ainda pelas memórias tenebrosas que guardou dos eventos desastrosos causados recentemente nesta cidade pelos elementos água e fogo. A Marta, ensinou-nos por entre memórias musicais sobre a energia metal e sobre como ajudar os nossos pulmões a serem o mais saudáveis possível! Isto, pertinentemente por meio de canções didáticas da sua autoria. A Helena foi incrivelmente sucinta e produtiva no conteúdo. Quando demos por nós, tínhamos ouvido um compêndio de canções, memórias e sons num curto espaço de tempo e a entrevista tinha acabado. Ainda mandou a Sara coscuvilhar as bilhardices alheias na Barreirinha, pois essa era uma das suas memórias sonoras de infância. Respeitando o novo equilíbrio, também houve homens! Tivemos o Tiago Castro de manhã que nos informou sobre a vitória que o nosso rajão está a ter pelas tunas de Lisboa. De início, não queriam que tocasse aquela coisa marreca, fora de formato, que nem é cavaquinho nem é ukulele e de certeza que não é uma guitarra… Agora, depois de alguma boa persistência, querem todos aprender a tocar e a compor para o instrumento. Um certo mistério que há na sua reentrância convence qualquer um com interesses acima dos mínimos. O Paulo Gouveia contou-nos sobre seu trio jazz, o "Dona Zica", e do arranjo que fizeram do jogo (agora já retro) "Sonic". Ficámos a saber também que aprendeu a tocar ritmos rock na bateria, sozinho, no local de ensaio da banda do seu irmão Filipe. Sempre que estes acabavam de tocar, lá ia o Paulo, porque era só aí deixavam a sala para "as crianças". Stills da gravação, escolhido por Sara Rodrigues e Rodrigo B. Camacho Fotografia de Sara Rodrigues
Hoje o dia começou com uma visita à loja de decoração da Fernanda Martins e do António Dantas, mas o propósito foi o de irmos à parte de trás do escritório, encontrar uma porta traseira que dá para um estreito caminho de cimento que depois se transforma em terra e diversas plantas. Neste, encontra-se um riacho que corre fluido, saindo de diversas tubagens com água soando sempre em movimento renovado. ‘Deixo sempre a porta aberta, não consigo estar aqui com ela fechada’ disse a Fernanda; realmente foi um achado incrível, um lugar com tal longo e pitoresco caminho que parecia ir até ao outro lado do mundo se o pudéssemos seguir. Falámos de gravar lugares marcantes, não só riachos mas levadas e montes em que se encontram todo o tipo de insetos sonoros. O Dantas lembrou-se do épico momento em que o John Cage veio ao Funchal com o Merce Cunningham e o David Tudor em que metade do público, que já era pequeno, foi-se embora indignado e a outra metade nunca mais esqueceu o concerto. Vimos ainda uma peça gravada pela Sara e pelo Rodrigo num concerto do NME (agora New Maker Ensemble) em que o Mark Barden escreve na partitura momentos de inspiração e expiração, tentativas de libertação de ar e suspensões súbitas; onde tudo está por um fio e pode falhar. Mais tarde a Cristina Vieira e o Nuno Filipe vieram ter connosco à PIPINOIR. A Cristina, entre músicas tradicionais, lembrou-nos novamente do som de uma levada e ainda da sua mãe a costurar, e o Nuno Filipe, de gatos que miam o tempo todo, incessantemente sem que ele perceba o que realmente se passa. Escolheu ainda reavivar o som dos sinos quando tocam na igreja, um marco dos seus dias passados no seminário até aos dezasseis anos, quem diria! Foi o primeiro a tocar piano, e trouxe-nos num grande arranjo da música ‘Black Bird’ dos Beatles que, apesar de não ter sido cantada, explica: "…all your life you were waiting for this moment to be free, blackbird fly, blackbird fly, into the light of the dark black night…" No dia anterior o Zé Camacho tinha perguntado à Sara pela música de que mais gostava, já que esta foi uma das perguntas que ela lhe fez. Ela mencionou a lendária Nina Simone, e hoje, como são os anos do pai da Sara, e ele já não está cá presente, mas sempre em espirito, ela gostava de lhe dedicar esta música: Love me, love me say you do let me fly away with you for my love is like the wind and wild is the wind …for we’re creatures of the wind and wild is the wind …let the wind blow through your heart and wild is the wind Hoje o chão já estava pintado de branco, atraindo as mais diversas pessoas até ao espaço com a luz que emanava. Realmente parecia já termos chegado ao céu, ou a algum paraíso, só com uma janelinha para o mundo terrestre com um raio de sol a entrar cheio de vida. Agora só faltam as memórias no espaço, que até agora já foram tantas, e particularmente sempre lembrando os pais. Nós que ainda aqui estamos, continuamos a mantê-los vivos nessa memória, e assim daí em diante, de geração em geração estas vão ficando gravadas. Esta peça, para a Sara, lembra-lhe o seu pai. Esta é a sua memória mais forte e sempre presente, à qual lhe é dedicada. Ele iria com certeza gostar do som do riacho e ainda mais do das pedras da praia a rolar. Fotografias de Sara Rodrigues
Acordar e ver o chão branco foi uma maravilha! É que apetece mesmo rebolar por ali abaixo! Toda a gente que nos aparece à porta, se não diz, mostra com os olhos que está verdadeiramente abalada por tal impacto dramático. Agora gravamos as coisas cá no andar de baixo porque queremos evitar sujar o chão, que será marcado ainda pela Sara mais à frente no processo de construção da sua peça. Conseguimos uma boa luz durante a maior parte do dia, quente que baste, intensa, porém filtrada por duas entradas a poente, que difundem a fonte e geram um ambiente acolhedor mas, ao mesmo tempo, de uma força e seriedade arrebatadoras. A testar esta nova disposição espacial, apareceu o Roberto Moniz para gravar depois do almoço. Falou-nos das suas primeiras aprendizagens musicais em casa, no meio de cordofones, cantoria e muita brincadeira. O Zé Camacho veio depois, contando-nos energicamente sobre memórias muito próximas das do Rui Camacho (seu irmão). Estas incluíram tanto a Praia do Toco como a Praça do Peixe e o Mercado. Mais à tarde conseguimos gravar os locais que o Roberto Moniz nos apontou, que iam desde o frenesim dos carros até ao som dos barcos no cais. Pela descrição, se não denotado, o Funchal poderia passar por Nova Iorque dos anos 70. Agora com a decisão de prolongarmos a abertura ao público de "Taxonomia", o Rodrigo fica a servir de recepcionista a públicos que nos fluem pelas portas a dentro que nem ribeiras das mais variadas fontes. Está-se claramente a confirmar o benefício de termos um chão imaculadamente branco… Já no fim do dia, ainda passou, quase para não parar, um senhor que tinha sido dono de quase toda a rua! Como reação a uma certa incredulidade da nossa parte, disse: "De toda, não! Só destas todas do lado esquerdo!". Contou-nos a breve história do nº 17 e foi embora feliz por ter falado com alguém durante o seu passeio, confirmando, ao despedir-se, o bem que faz falarmos com os outros. "É que toda a gente precisa!" Fotografias de Sara Rodrigues
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