Agora é mesmo verdade: tivemos a última gravação! O Porto parece um poço infinito de músicos e artistas, onde reparámos que, mais frequentemente do que pensávamos, a arte visual e a sónica interseccionam-se. Sentimo-nos em casa! O único problema é que quase acabávamos por montar um serviço público para deposição de memórias em conserva. Por isso, tivemos mesmo de cortar esta fase por aqui. Agora seguem-se exclusivamente os processos de edição e, por fim, lá vêm as montagens.
Mas sim, hoje veio cá a Marta ngela dos Von Calhau, de quem já várias pessoas nos tinham falado. Já estávamos em conversa há vários dias para ver quando se dava a esperada visita e hoje apareceu, para ser a última. Trouxe com ela o som das moscas da sua infância e contou-nos também que tem fobia de vespas. No entanto, imitar o som da passarinhos com a boca fá-la relaxar. Às vezes diverte-se a abrir a “caixa dos pássaros” em público e bastidores de espetáculos só para confundir as pessoas. Como é tão estranhamente credível o que faz, toda a gente tenta saber onde raios anda o pássaro invisível, enervando- os entretanto. Confessou-nos ter sido esta a primeira vez em que se pensa melhor no assunto. Diz que se calhar tem realmente uma atração por insetos voadores, já que constantemente os convoca à performance. “Talvez por bichos alados em geral”, adiantamos nós, já que as gaivotas foram eventualmente chamadas ao barulho. Deu-nos duas referências da corrente avant-garde finlandesa, que descobriu ao procurar vinis avulsos em todos os cantinhos do Porto, principalmente nos menos vasculhados... Pekka Airaksinen e Arktinen Hysteria vieram ao de cima numa sequência de ideias em que falou de influências budistas e de minimalismo repetitivo. Também nos contou um pouco sobre o lendário single “Extended Play” do membro dos Sperm J.O Mallander, em que o nome do ex presidente finlandês - Kekkonen - se ouve repetido em loop a quantidade de vezes equivalente a todos os votos que o senhor recebeu para ser reeleito, pela não-sei-quantésima vez... A gravação muniu-se também de alguns “vidros partidos”. É que com intenções de nos chamarem a atenção, atiraram-nos uma pedra ao vidro (como se faz nos namoricos para a mãe não saber), mas com a força do rock nortenho que se passava ali no jardim de S. Lázaro. Como havia Festa no Jardim, o rock entrou-nos pela janela com um pouco de força a mais, e pronto, lá se fizeram alguns “cacos” nas gravações da Marta. Por meio de um trabalho rodopiante, o Rodrigo começa a notar que, ao completar novas secções da lona, emergem agora muitos mais mapas, muitas notas referentes a noções de espaço, luz, posições e movimentos físicos. Há coreografia, há uma maior dinâmica. O painel do Porto começa agora a diferenciar-se muito mais do do Funchal (e ele prefere o de cá). A meio de tanta variedade, a Marta foi escolher o que achou ser mais idiossincrático. Dizia “TOTAL MESS” por cima de um grande borrão de direcionalidade explosiva. O que fez acerca disso foi basicamente o oposto, ou o que se pode chamar “uma certa resistência”. Ficou quieta em frente um bombo e uma tarola. Bateu-lhes quatro vezes ao longo de muito tempo e, aos poucos, começou a ganhar um certo porte de mãe natureza, pois até parecia que estava de olhos fechados a controlar mentalmente a balbúrdia que as gaivotas faziam lá fora. A tentar reverter os nossos desconcertados horários, impusemos um limite laboral - “bate duas da manhã e vai tudo para casa!” - que cumprimos com algum rigor. Passou mais de meia hora do previsto mas é que a Sara já estava a editar os brutos da última entrevista e é sempre fixe sentir que acabámos um bolo inteiro, que não ficaram migalhas para trás. Para todos os efeitos, sentimos um certo amansar de uma série de dias em que temos voltado às tantas para casa. Como hoje (ontem) foi domingo, às três da manhã não havia ninguém na rua. Só se ouvem mesmo as bicicletas; ou o “trrr” das pernas paradas, ou os ocasionais “ticks-tocks” das correntes em tensão na subida até ao Marquês. Mentira! Por falar no dito, também há as senhoras que trabalham todos os dias a estas horas alí na casa vermelha acima do Eskada. Parecem-nos sempre muito animadas. Servem bebidas, contam piadas. Mas de resto, é sempre um silêncio fantástico. Começámos o dia em separado, já que a Sara teve que ir a Leça com a mãe. Aproveitou então a boleia de carro para fazer umas paragens por certos sons que ainda estavam em falta na sua lista. Ficaram as duas a averiguar se o elétrico que o Babo usava para ir e vir da escola ainda existia. “Já há tempos que acabaram com parte disso”, explicava a Irene, que dirigia o carro em direção à Foz Velha, segura de que iriam encontrar a linha do elétrico ainda presente. Sorte nossa foi que à chegada estava parado o dito veículo - agora de utilidade quase exclusivamente turística - patrocinado pelo El Corte Inglés. Não se sabe se a “corte” cá no Porto é dos ingleses, ou se é dos espanhóis, ou mesmo dos franceses, contudo, este elétrico, que certamente já é português, estava coberto de azulejos “tradicionais”, que se faziam notar em autocolantes colados por todas as suas faces visíveis. Mal o equipamento ficou montado e pronto a gravar, o sino de começo de viagem dava sinal aos passageiros, mesmo a tempo do enquadramento que focava os carris e as rodas fugazes que depressa correram com a aparição. A Irene substituia agora o Rodrigo com o Zoom, e mostrava as suas aptidões no trabalho da captura sonora.
Já que estavam perto, dirigiram-se para a frente do mar, e andaram pelo passadiço quase até ao farol descrito pela Leonor. À Sara fez-lhe lembrar um trabalho que fez, já lá vão uns três anos, em que também andou a deambular pela cidade em busca de imagens aquosas e de pedra, o que a fez dirigir-se ao mesmo lugar do imaginário da Leonor. Realmente é um sítio único em que o trabalho feito pelo homem, na tentativa de controlar as águas, se faz notar pelas ondas que chegam velozmente e que depressa se tornam banhos calmos e límpidos aos pés de qualquer banhista oportuno. A Irene, entusiasmada com a paisagem, comentava em sussurro uma data de coisas interessantes, eternamente ignorando porém o facto de que a sua voz entraria na gravação que ela mesmo estava a fazer do ambiente. “Sim, o sussurro ouve-se quando estamos perto do microfone!”, tentava explicar a Sara. Ponderou depois que, às tantas, a sua mãe poderia fazer parte do ambiente sonoro que se criava, já que é do Porto e poderia muito bem ter ido ali fazer praia por decisão autónoma… Adiante, pegaram no carro, com a Sara no assento do passageiro, já que se esquecera da carta em Londres, ou fez por se esquecer… Entre trânsito e sinais, lá chegaram à última paragem sónica - a tal cidade que se faz desenrolar em som à medida que o dia vai crescendo - situada mais precisamente, pelo Molarinho, no Campo Alegre. A música original que nos tocara uns dias antes - sobre gaivotas e pombas - descrevia o início do que seria a captura do som em tal espaço, mas chegando ao local da paisagem, esta sentia-se muito tranquila. O sol batia no cinzento do cimento que se estendia, e só lá ao longe andava uma pomba perdida e solitária. Montámos pela última vez o equipamento, com o tripé e a câmara arrebitados, mas cada vez que um enquadramento se proporcionava, lá a dita pomba se mexia com as suas pequenas patinhas marchantes. Por fim, a Sara optou por sacar um plano mais extenso, metade muro metade passeio, e lá observou mais um pouco a pomba, que prosseguia - talvez nem perdida de todo - que nem cowboy [cowpigeon?] via horizonte, seguida duma velhinha que usava a parede como apoio ao andar. À noite, após muito trabalho adiantado lá no Sol, fomos todos ao Palácio de Cristal para mais um concerto da Porta Jazz. Depois, na companhia do Marco, da Daniela e do Francisco, parámos lá em casa do João e da Lena para um resto de noite líquida que se estendeu até às tantas! Isto agora vai ter de abrandar… Já passa algum tempo desde que o último solstício aconteceu, e por isso é de esperar que os dias comecem notavelmente a ficar mais pequenos. No entanto, com o andar da carruagem, parece que o oposto se prende connosco. Aqui no Sol, já que é sempre de dia, cá vamos trabalhando, de sol a... As noites já entram nos dias, e por isso apareceu o Sérgio Tavares, contrabaixista, que conhecemos pelo José Valente ontem - quer dizer - hoje. Como não poderia deixar de ser, convidámo-lo a gravar pois a conversa de ontem merecia continuação. Como diz o José, é tão difícil (e por conseguinte, tão bom) - com todas as nossas convicções e fragilidades - encontrarmos pares.
Descobrimos em entrevista que o Sérgio tem uma ligação muito profunda com Trás-os-Montes, de onde o pai da Sara vem e de onde lhe chegam umas tantas influências inexplicáveis que se prendem com um certo ter de ser, um ter de fazer, um ter de se cumprir qualquer coisa de uma certa forma. Algo de bastante místico, mas verdadeiramente palpável. Místicas à parte, depois de nos ter apresentado uma síntese virtuosa de duas das suas grandes influências musicais, o Sérgio tocou-nos um pouco das “Elegias”, que está a desenvolver com a mulher, Daria, em torno de um trabalho relacionado com a dimensão psicoafetiva que os humanos desenvolvem com a paisagem, e com a memória dos que partem. Partimos em seguida para a secção mais fonográfica, e por isso mais concreta, da questão. O Sérgio diz que tem ensinado à filha, de cinco anos, a diferença entre os vários sons que as gaivotas produzem, aprimorando-lhe o sentido auditivo, deixando-o sensível a todas as nuances. Mas o som que escolheu, felizmente não foi o de mais gaivotas. Mandou-nos ir gravar os comboios para o jardim lá perto de sua casa, onde diz que passam pelo meio do som de árvores que brincam com o vento o dia todo. Ficámos então de lá passar para a dita gravação, paisagem que por certo aparecerá num próximo diário. Escolheu ainda imitar os sinos que a Sara tinha gravado, mas a interpretação foi muito para além das badaladas, ritmicamente simples e compassadas. Confusos com a sonoridade inquieta, viemos a descobrir, já no fim, que um episódio da RadioLab se tinha entreposto, sem aviso, na mistura. [Já vos aconteceu a merda do Itunes abrir sem que lhe tivéssemos pedido...?]. Em resposta a um discurso político de tom semi- propagandístico que apareceu lá no podcast, o Sérgio opôs-se com todo o corpo do contrabaixo numa revolta sonora. Já de frente à lona, que finalmente se vê riscada, o Sérgio foi buscar, nos intermédios de muita coisa, um pequeno apontamento técnico sobre notas curtas e formas de abafamento repentino. Havia um motivo rítmico, no qual pegou de início, e lia-se uma indicação sobre o efeito a ser atingido. Com tão poucos rudimentos, deu uma grande volta em torno de toda a secura que se consegue produzir num instrumento de corda daquele tamanho. No fim, tivemos a visão poeticamente absurda de que séculos de cuidado organológico para que o contrabaixo fosse um corpo reverberante estavam a ser ali contrariados, por nós, que estávamos com ganas de sufocar o bicho de todas as formas e feitios. Como sempre, a conversa estendeu-se avante, sobre tudo aquilo que a formalidade das nossas peças não comporta de forma inteira. Falámos muito da necessidade de se experienciar o rural profundo, o silêncio, o espaço, a espiritualidade na sua essência e indagámo-nos sobre que influências terão estas vivências de lugares não urbanos nas vidas e personalidades de toda esta gente. Despedimo-nos então, que o passo dos dias não perdoa, e a filha do Sérgio também estava à sua espera para mais brincadeira. Já estava a anoitecer e, como prometido, houve churrasco! Demos abertura portanto a um intervalo comedido para ir lá acima, e encontrar - com o Zé na proa - uma grande festalhona que já das escadas soava a música dos Balcãs. Tinham-nos dito que a banda de Ermesinde ia estar presente, mas não nos tínhamos inteirado de que a Banda Internacional de Ermesinde era composta por membros devidamente provenientes de várias nações diferentes, todos porém a tocar música de leste a mil à hora. Hoje, em vez de peixe, só havia febra no pão. A mostarda conferiu-lhe o tom de festa, e ficámos até serem pedidas “mais uma!”, “mais duas!”, “mais três!”, mais quatro músicas... e ter, por fim, a banda que se ir embora. Aproveitámos a dica e descemos ao Sol para continuar a faina, já que no Sol é sempre de dia, mesmo que esteja de noite. Os vários grupos de pessoas que escoavam pelas escadas da CCOP a fora bateram-nos à porta e por cá entraram para dar uma espreitadela. Obrigado pelo interesse! Não sabemos é até que ponto é que a luminosidade branca, numa cidade que é bem alaranjada de note não deve ter feito metade do efeito... Hoje a Sara foi à praia, porque pensava terem chegado ao fim os dias de gravação dos músicos convidados, e por isso era bem merecido... No entanto ainda não tinha chegado ao fim das gravações dos sons da cidade do Porto, mas não levara o equipamento com ela. Uma hora e meia de pausa na praia foi o suficiente para aparecer o senhor a vender batatinhas (que o Vitor tinha referido já há muito tempo). Não é que parou mesmo à frente da toalha? Em pose super fotográfica e tudo... Desapontada por não estar pronta para gravar o acontecimento, lá voltou para o Sol - onde estava mais fresco - já quase a sentir falta de voltar ao trabalho!
O Rodrigo ficou de continuar a fazer desenhos, a avançar risco a risco pelo branco tenso da lona. Todavia, viu-se sozinho no espaço e não lhe deu a gana devida. Faltava talvez um café para a locomotiva começar a chiar. Subiu por isso à CCOP para ver o que lá se passava, e precaveu-se, pois sabia que se depararia com um ambiente bem animado, composto por uma mesa de senhores muito simpáticos, os Cú Branco na sua esfera fusco-luminosa, e o Zé em modo top-barman. Precaver-se quis dizer pegar na câmara e no microfone para começar a trabalhar na captura de momentos imperdíveis. Difícil, foi voltar a descer lá para a galeria para avançar o outro tipo de trabalho, quando pareciam todos estar a divertir-se imenso num dia de sol. Como prometido, e agora retomando o passado dia de ontem por um pouco, por último, tivemos cá o Gabriel Mendes (Gabi von Dub). Não o conhecíamos quando nos perguntou no facebook sobre as entrevistas (a do Babo em específico!). Queria saber onde estava, e saber se por “diário” nos referíamos às entrevistas em si. Conversa puxa conversa e a Sara já o convidava a aparecer, tanto pelo interesse demonstrado pelo projeto como pelo seu historial de musica eletrónica Portuense, que prometia dar uma grande entrevista, pensou. Já que o dia quinze era o último dia de gravações, calharia mesmo bem, ainda que se tivessem juntado os tais quatro em linha (o que fez com que hoje escrevamos sobre ontem...). Apareceu então de bom grado cá no Sol, e fomos com o resto do pessoal ali ao lado para um refresco (sim, pois estar fechado a gravar durante horas a fio requer, de vez em vez, pelo menos um pouco de ar que nos entre fresco pelas narinas adentro e nos chegue à cabeça, que já só roda sobre si). Ainda no café, conhecemos então o Gabi em carne e osso, que se mostrou extremamente aberto, interessado, curioso e muito bem disposto. Transpusemos toda essa frescura para a cadeira do entrevistado e, quando nos começou a falar um pouco do seu percurso e da vida como DJ, editor e criador, fê-lo de forma a abrir e reavivar a possibilidade de todos vivermos a níveis de sensibilidade altíssimos. Com uma visão e uma atitude eclética, as respostas estenderam-se naturalmente bem para lá do requerido. Trabalhando desde o techno ao ambient, disse que na verdade tudo pode ser música, e que não gosta de se fechar em géneros musicais. Como explorador que é, acredita que todos os sons são importantes e podem ter um papel revelador se assim lhes dedicarmos o tempo e o ouvido necessário. Das experiências sonoras mais micro, às mais macro, tudo pode ser material de recolha e reinvenção sonoplástica. Contudo, quando a Sara lhe perguntou por uma influência do arco da velha, os Sonic Youth vieram de novo prestar contas ao Sol! O Gabi foi o único entrevistado a ter direito a uma mesa. [Note-se que mais ninguém pediu uma]. Deu-lhe um ar profissional, ao passar músicas, com as quais brincou de forma dúctil, abrindo via a comentários que depositava, aqui e ali, delicadamente por cima de algumas partes. A dada altura, parecia que estávamos num programa de rádio! Entretanto, saltou rapidamente do laptop para o seu iPhone, porque queria tentar, com uma nova app gratuita que estava agora a testar, interpretar um fragmento que o Rodrigo tinha dedicado à exploração fenomenológica do insulto. O Gabi notara que os pitchers multicanal da aplicação se assemelhavam muito a vozes humanas e, já que poderiam muito bem ser gente a falar, também seriam capazes de recorrer ao insulto. Ainda ficámos a conversar muito depois da parte mais formal. Entretanto, passaram as horas e tivemos que nos despedir, pois ainda tínhamos que dar conta de todo o material gravado e saber quão gerível estaria a situação. Demos uma vista de olhos ao volume que temos em mãos e pensámos “pois, pois, é melhor dar o período de gravações por encerrado!”. É que tem sido muito bom, mas isto ainda nos vai dar muito trabalho. Isso de encerrar não sei o quê era o que pensávamos... foi preciso chegar ao dia de hoje para irmos jantar com o José Valente e terem-se continuado a abrir exceções. Claro! Fomos jantar ali ao lado num lugar bem simples e simpático. Falámos de tudo um pouco de forma animada, que nos é própria, e nisto chega um amigo dele, contrabaixista. Era o Sérgio Tavares, um homem de presença calma, solene, mas forte. O contacto foi tão interessante, e demo-nos tão bem que pronto, lá se abriu uma exceção e vem o Sérgio amanhã aí gravar às três. Como era de esperar, por termos anunciado que hoje seria oficialmente o último dia de gravações - emulando um pouco a edição do ano passado - tivemos uma data de entrevistas em carreiro. Foram quatro em linha. Estavam para vir já há alguns dias, mas entretanto meteram-se as férias e os afazeres. Chegaram então a Gabi Vilar e a sua irmã Sara Vilar, que trouxe consigo o namorado Paulino Garcia. A Gabi fora colega do Rodrigo cá no Porto mas já há muito que não se falavam. Como vieram os três em “pacote”, o reencontro foi cheio de um misto de velhas lembranças e novas estórias, claro, seguidas de uma cervejinha ali ao lado!
A Gabi lembra-se de cantar muita música tradicional. Lembra-se das lengalengas, e disse-nos que ainda hoje trabalha muito com esse tipo de material, como base para o espevitamento da criatividade dos públicos mais jovens. Lembrou-se de projetos em que participou enquanto estudava no Porto e cantou uma data de canções, para dali a nada estar a imitar os vendilhões que acompanhavam os sons das viagens que fazia, passando sempre por Campanhã: “Olha corta-unhas, canivetes, chocolates!”. A irmã, Sara (já a terceira do mesmo nome a aparecer no projeto), cantou um fado de que se lembra ouvir a mãe cantar lá na estufa das flores que têm na Póvoa de Varzim. Despachou-o de forma reverberante, com uma dicção clara e pronta, que nos surpreendeu. Teve de chegar o último dia para que nos calhasse um fadinho. Já do lado do público, a Gabi confirmava vivamente a memória de que a Sara cantava todos os dias as músicas que aprendia no infantário, por ordem, e sem interrupções. Caso alguém quisesse (ou tivesse mesmo) que ir dormir, e por isso ralhasse com ela para que se calasse, lá tinha o ciclo de canções que começar do início… Já o Paulino, sentado ao piano, lembrou-se do pai. Resgatou da caixa de memórias uma marchinha que se lembra de este ter composto para uma peça de teatro lá no TEP (Teatro Experimental do Porto). Uma coisa simples - já por natureza própria, nostálgica - que guarda com gosto. A meio da entrevista perguntou-nos se poderia “praguejar”. Queria saber se, para responder devidamente a uma das perguntas da Sara, teria autorização para falar à Porto com a maior das autenticidades. É que cresceu no meio de ambientes vários em que o palavreado era sempre a aviar. Dissemos-lhe que estava completamente à vontade para arrancar, e lá arrancou com um saco de situações anedóticas que se lembra - com apenas três anos de idade - de ter vivido lá perto das Antas, onde diz que os palavrões, para além de vírgulas, têm claramente a sua utilidade linguística. Com o piano deixado onde estava, continuou o Paulino a ser entrevistado, agora pelo Rodrigo. Debruçou-se sobre um conjunto de campos harmónicos, com alguma resolução melódica, que interpretou, estendendo-os tematicamente, ao passo que, em tempo real, nos explicava o que estava a acontecer com o material. O Paulino gosta muito de improvisar ao piano. Gosta de harmonizar melodias simples com o seu saber-fazer jazzístico; de as recontextualizar uma, duas, três vezes e mais alguma. Algo que sabe fazer muitíssimo bem, entre a razão e a intuição. Fez uso de números que encontrou anexados a algumas das notas e lá desenvolveu maneira de - entre transposições, sobreposições e outras operações - sacar quatro recomposições do bolso. Havia um quinto, com mais limitações, mais regras, imposições, e por isso preferiu não tocar nesse, e explicou porquê. Prefere a liberdade de poder ir para onde a música o levar, no momento, fortuitamente, pois se houver regra que castre, sente que não vale a pena. De volta à Gabi, que tinha estado durante este tempo todo a vigiar as lonas atentamente, esta montou pela primeira vez uma performance em ensemble, para contrariar a onda individualizante das entrevistas um a um. Por ter estado também a olhar para o outro lado da rua, incumbiu-nos de interpretar uma frase que viu escrita naquele cartaz muito fixe que figura plantas: “Every square meter of the earth”, sem saber que ele mesmo tinha pertencido a uma exposição da Galeria do Sol! Guiando-se por um plano paramétrico que tinha encontrado logo no início da lona do Porto, assumiu a frase como que um haiku. Falou-nos da forma geral do que tinha em mente, ensaiou-nos e ficou tudo gravado à segunda. Já a Sara escolheu um gráfico em que a unidade se dividia inúmeras vezes por dividendos de 2 a 11. Utilizou essas proporções para inventar um bordão, que o Rodrigo se ofereceu para cantar infinitamente, e em relação a este, ir subindo e descendo com a voz carregada de energia, batendo um por um, todos os pontos que estipulara, uns em relação aos outros, mais altos ou mais baixos. Foi no final desta série de gravações que nos apareceu à porta o Gabriel Mendes, mais conhecido por Gabi von Dub. Entrou recentemente em contacto connosco sobre os diários, e daí a conversa trouxe-o cá, mas como hoje foram muitas entrevistas e estamos estafadíssimos, escreveremos sobre a dele amanhã, que já se faz tarde. Vinda da Trofa, recebemos a Ana Cruz, colega do Rodrigo já desde o tempo da ESE. Viemos a descobrir que agora é ela quem dá aulas, desde a creche ao secundário. Apesar de apontar como música mais recorrente a do “bom dia”, que canta a cada amanhecer com uns miúdos de três e quarto anos, só se conseguia mesmo lembrar da canção de despedida, bastante semelhante melodicamente. Em modo de férias, parece ter apagado da memória todas as melodias relativas à escola, e até os nomes dos próprios alunos, como nos contou sobre um incidente por que passou recentemente, muito constrangedor! Lembrou-se ainda da canção do Chico Buarque (com interpretação da Maria João e Mário Laginha) chamada “Beatriz”, mas pelos vistos, recordar-se da letra é que já foi mais difícil. No entanto cantou-nos ainda um extenso extrato sem vacilar, e explicou-nos que a letra, apesar de ser sobre uma atriz, pode referir-se a como cada um passa pela sua vida, de forma mais ou menos autêntica.
Para quem não é mesmo do Porto, parece entusiasmar-se muito pelo sotaque do “puoarto”, e pelas vozes de quem não se importa de pôr a conversa em dia, publicamente, a meio de qualquer situação. Recorda os tempos em que apanhava o autocarro ali nos Aliados para o Campo Alegre e ouvia das dores da vida, sobre desgostos vários, sobre as doenças... mas a páginas tantas a conversa já era sobre a rede de troca de boatos a alta velocidade que se dá em vilas como a Trofa. Em seguida escolheu um fragmento com palavras soltas, ou antes, interligadas por percursos similares aos dos autocarros. Qualquer trilho à escolha facultava paragens em estações como “solidão”, “nome”, “grito” etc. Passou por quase todas elas, só não parou em “fruta”, que parecia não ter acesso por entre as linhas que seguia. Em vez disso, deixou-se ficar mais tempo em “liberdade”, para melhor apreciar as vistas. Antes de nos despedirmos, já o Bertand entrava novamente, desta vez com a sua guitarra predileta. Lá nos formalizou a prometida performance de peso da peça do Ferneyhough, e ainda trouxe e deu uso ao seu e-bow, numa tentativa de se reconciliar com a guitarra da Sara. Mesmo antes de fecharmos o estabelecimento, tivemos a tão esperada visita da Leonor Parda! Foi desde o início do projeto que decidimos contar com ela, e vejam que a só conseguimos agarrar já bem perto de se esgotarem os benditos dias de gravação. Com o avançar das horas pela tarde a dentro, estávamos a ver a coisa a prolongar-se desmedidamente, com a visita do Gonçalo e do Laranjeira, com quem nos demos aos descarrilamentos das cantorias avulsas e das fotografias para o Instagram. Uma nota sobre o Instagram: temos um, mas está mortiço, e assim o estava o da Rua do Sol, bem desnutrido. O Laranjeira reanimou-o com alguns recortes dos últimos dias. Ainda apareceu aí o Babo que se despedia, - já ansioso para ir de férias - e o Zé, que ainda presenciou o início da gravação da Leonor, mas que depois atendeu um telefonema, escapulindo-se para sempre. Após várias peripécias, o público hoje resumiu-se ao Gonçalo. Normalmente não o há de todo. Temos que admitir que ficámos surpreendidos com o poder vocal da Leonor, porque na verdade ainda não a tínhamos ouvido em modo performativo. Gosta de estar em frente ao microfone, e com efeito sabe trabalhar com ele. Falou-nos da Diamanda Galás e da Nina Hagen, mas não foi preciso tê-las presentes para ficarmos com o registo de um intenso e robusto par de interpretações vocais da “African Reggae” e da “The Litanies of Satan” do Baudelaire. Considera ter sido marcante começar a ouvir Freddie Mercury no carro, com a mãe, no caminho entre casa e escola. Todavia - como a uma dada altura se extravia todo o percurso - começou a pedir discos emprestados ao tio, e aí começou a preocupar-se a mãe com as inclinações musicais da filha, que se tornavam certamente mais tenebrosas e se deleitavam por um certo lado mais obscuro. “Sabe-se lá em que é que tudo aquilo poderia dar!” Nós cá achamos que o caso correu lindamente, pois se calhar sem elas a Leonor viveria na ausência da garra que hoje nos mostrou não lhe faltar! Quando chegou, disse não estar muito inspirada, mas para além de nos ter abalado com uma primeira performance, já com o Rodrigo fez por atingir o mais alto nível em interpretação de notação não convencional. Escolheu uma série de pequenos diagramas, que mostravam pontos - representantes de pessoas ou objetos - que trocavam de sítio constantemente. O que ao início parecia ser um pouco confuso, rapidamente se clareou, com uma atuação convicta que durou uns bons dez minutos. Muniu-se de um bombo de chão e cantou imaginativamente, enunciando de forma regrada o que fazia por secções, numerando-as uma a uma, comportando a cada volta variações oportunas de diferentes modos de improvisação. Jantámos com o Gonçalo aqui perto. Evitámos a fila do Guedes, pois havia muitos turistas, mas quedámo-nos pelos nos Poveiros. Foi a sopa do dia que alimentou estas últimas linhas. Hoje entrámos mais cedo porque a Inês Lapa apareceu, como prometido, na sua hora de almoço. Tomámos isto como louvor, já não é qualquer um que dispensa dessa preciosa hora durante um dia de trabalho para vir gravar connosco! Ligámos logo o material e entrámos em modo de entrevista. A Inês, com quem já tínhamos falado outro dia sobre o projeto, veio prevenida com a sua pequena caixinha de música, pois ouvia-a sempre no quarto quando era pequenina. Começou a aprender piano, tocando Schubert, por uma partitura que a sua própria avó transcrevera à mão! Como nos dizia com um sorriso maroto que “quem conta um conto acrescenta um ponto”, presume que a versão que tem na memória é provavelmente isso mesmo: uma versão ligeiramente diferente da original. E riu-se com gosto pela infração à lei do objeto fechado e consagrado dos eruditos!
Cantou-nos ainda uma música dos GAC sobre o pôr do sol, politicamente associada à tensão dual entre o trabalho e o descanso (que mesmo em contraponto do esforço, o reflete). Contudo, a superar toda a seriedade, como não podia deixar de ser, mais uns gritos de gaivota. Depois, pegou numa tabela com algumas iniciais, alguns códigos, uma frase completa, mas muitas incógnitas. Em conversa estilo ping- pong com o Rodrigo, conseguiu vir a desvendar uma quantidade considerável de detritos composicionais, que usou, tal qual fragmentos arqueológicos, para reconstituir uma frase inteira, de métrica arrojada, que muito se aproximou da versão final da obra na qual foram utilizados todos estes materiais. Pensámos que seria a única entrevistada do dia, mas nisto entra a Leonor que não contávamos receber tão cedo. Vinha animada, com o seu cão Sirius e disposta a marcar entrevista. “Estão aí amanhã?”. Afinal não era para hoje, mas não tardou, avançou com mais uma carrada de músicos que ainda poderíamos contactar - incluindo mulheres - porque realmente a Inês foi a única, depois de uma data de dias a abarrotar de homens músicos. Sem que nos apercebêssemos, entrava já pelo Sol o seu amigo Bertrand. Veio também a sua amiga Sara e, não tardava, já estavam as duas sentadas no chão à espera da entrevista que emergia. Como é guitarrista de música contemporânea, a Leonor juntou-o oportunamente à ocasião. Bertrand, já sentado na cadeira, contava-nos que tinha pais mexicanos mas tinha nascido em Lyon. Ficámos bastante impressionados por saber que tinha estudado a única peça para guitarra do Brain Ferneyhough de cór! Pedimos que exemplificasse um pouco na guitarra, mas a única que estava à mão era uma que a Sara tinha lá para casa, e que já não lembra de como foi lá parar. Ainda tentou estar à altura do desafio mas disse entretanto que, para além da qualidade da guitarra em si, precisava mesmo das marcas visuais da sua guitarra de estimação, que tinha ficado em casa. Gravaremos então as partes musicais de alto calibre já amanhã, para que consiga executar as técnicas contemporâneas com o devido primor. Chegando aos sons característicos do Porto, lá voltavam o raio das gaivotas a aparecer, desta vez exemplificadas com uma garrafa de Super Bock a deslizar em modo slide pelas as cordas abaixo. Depois ainda se foi lembrar do som das maquinas nas oficinas das Belas Artes. Achámos que iríamos receber uns escassos momentos de re-interpretação, mas presenteou-nos com um “concerto” de máquinas nas cordas que quase dominou o serão, que todavia acabou com outro tipo de demonstração. Olhando para uma nota introdutória de uma das peças do Rodrigo, içou um cariz puramente técnico para elucidar os ouvintes sobre a variedade sonora que diferentes pressões aplicadas sobre as cordas podem produzir. Eram já quase oito e meia da noite quando nos apressámos até à Rua Passos Manuel, pois tínhamos combinado ir hoje gravar o dito pôr do sol que, apesar de ter sido hoje cantado pela Inês, tinha-nos já sido referenciado como som-imaginário de eleição da Sara Rafael. Aproveitando os amarelos e alaranjados, pusemo-nos ainda na fila para o Guedes, de microfone na mão - claro - a jeito de captar os velhos comentários descritos pelo José Valente como típicos duma tasca bem portuense. O Zé ainda nos convidou para jantar na rua ao lado, mas já estávamos na fila e, quem é que consegue resistir ao Guedes? Fomo-lo encontrar com uns outros poucos, a seguir, a tempo de uma baba de camelo bem cor de caramelo. Voltámos para o Sol já às escuras, e daqui a nada já entramos no dia seguinte... Para manter uma rotina que se instalou desde que voltámos ao Porto, voltaram a haver visitas de amigos estrangeiros. Demos então mais uma visita guiada da cidade, mesmo que ainda nos sintamos como uns verdadeiros estranhos cá. Foi um canadiano e depois um polaco, os dois conhecidos da Sara desde a sua residência em Como. Depois um lisboeta em Londres e agora a Mariana, outra lisboeta em Londres. Veio ao Porto com a mãe e confessou-nos que até gostaria de vir para cá morar, apesar de ter que convencer o namorado, que é inglês. Depois de termos passado a noite anterior num bar Egípcio na Boavista - ou assim nos faziam crer - com animação baseada em shishas e danças do ventre, combinámos ir ao Jardim Botânico logo pela manhã. Juntou-se o útil ao agradável, pois ambas ainda não o conheciam e a Sara, que também já pouco se lembrava do jardim, tinha de lá ir para encontrar a tal autoestrada de que o Gonçalo nos tinha falado na sua entrevista.
Admitimos que quando lá chegámos queríamos era ir à procura do menino de bronze, ilustrado pela escrita da Sophia de Mello Breyner. Depois de tanta procura, chegámos à conclusão de que o menino não existia e, que na realidade, em sua vez, lá está apenas uma pequena estátua fontaneira, da qual já só sobravam alguns contornos femininos e muito musgo que a veste. Fora a desilusão, fomos dar com rãs camuflando-se pelo meio de nenúfares, que nos indicaram o caminho para dita auto-estrada, de cedo fazendo-se ouvir. Por entre árvores e arbustos, lá estava ela, separada somente por uma rede de arame, mas nada que fizesse o tamanho som abrandar. Despedimo-nos do arvoredo insonorizado e da mãe e filha, que já se encaminhavam de volta a Lisboa, e lá fomos nós em direção ao Sol. Ficámos então à espera do Daniel Catarino e do Manuel Molarinho, amigos dum amigo do Rodrigo, o Dieter. Como não estava no Porto, sugeriu que os seus amigos fossem em missão. Gostámos muito de os conhecer e do facto de terem vindo até nós sem qualquer introdução especial. Não sendo nativos - um é de Lisboa, o outro de Évora - vivem os dois cá. Conhecem-se da faina de tocar e andar pela estrada. O Daniel trouxe o seu “latapau” que é um pau (braço) preso a uma caixa de latão (caixa de ressonância) e com somente duas cordinhas, com um pickup que se pode ligar a amplificadores via jack. Simples mas muito bom. Percussivo, reverberante e desafinado quando baste. Referiu e tocou tudo com este instrumento de cordas oitavadas como se nunca tivesse existido uma guitarra no mundo! Disse à Sara que aprendeu a tocar com os álbuns de Nirvana, que muito ouviu durante a adolescência, e que ainda os sabe de cór. É uma questão de memória física, tem tudo nos dedos. Imitou ainda os sons das obras enfiando composições dele pelo meio, já que é o que acontece quando tem de estar à espera que o barulho passe para poder gravar em casa! Deixou-nos depois com a sua música “Vaca Sagrada de Tetas Espremidas” com uma valente letra à mistura: “já não dás leite, também já não pastas…”. Entretanto pegou nuns rascunhos do Rodrigo e gostou deles por se assemelharem aos seus. Tem um caderno de anotações da mesma cor (papel reciclado, com marcas de café e outros borrões), muito escrevinhado, riscado, vivido. Foi aos poucos inteirando-se do que tratava. Notou que havia notas, que encontrou e tocou esquematicamente no latapau, e improvisou linguisticamente sobre um resquício de palavra que conseguiu resgatar dos escritos. Deu-se então a altura de passar a cadeira ao amigo Manuel, que mesmo que amante nato de tempos soalheiros, já nos pedia refúgio do sol para a sua dúzia de pedais. Mostrou-nos os seus dotes de construtor de realidades por camada. Lembra-se dos discos de vinil do irmão, uma experiência que começamos a notar ser mais recorrente do que pensávamos. Diz que aos quatro anos de idade sentiu-se magnetizado pela velocidade e pela urgência que ouvia na “Veneno” dos “Peste & Sida”. Contou à Sara que aquilo que mais toca é por certo aquilo que compõe, que desde que começou a pegar em instrumentos é sempre o que mais lhe sai do corpo. Realizou então uma das suas músicas, quase como se a estivesse a imprimir em três dimensões. Inspirada nas ruas do Porto, esta foi, mais uma vez, dedicada às gaivotas e pombos que sempre as ocupam, claro, já estávamos à espera… Quando o Rodrigo se aprontava para lhe mostrar a lista de fragmentos, interrompe-o o Manuel dizendo que preferia debruçar-se sobre um dos da lona do Funchal (já bem içada na parede a sul) no qual tinha notado logo à partida. Era uma lista ondulante de números e letras em cascada. Lembrou-se das montanhas que tem na memória dos lugares em que viveu e por que passou, lembrou-se de peixes de dorso à tona, lembrou-se de trabalhos de ficção em que a linguagem binária era mais do que motivo para tramas complexas e dinâmicas, e propôs duas interpretações para o mesmo fragmento. Uma terrestre, com um andamento marchado e energético, e uma aquática, em que se salientaram as tais texturas mais longitudinalmente ondulantes. E foi com esta referência que começou mesmo a chover quando fomos lanchar. Falámos de um molhe de coisas que abrangeu a crueldade contra animais e humanos e as diferenças culturais entre Porto e Lisboa. Despedimo-nos com abraços (à inglesa) e cá ficámos no Sol, já baixo, a avançar trabalho durante mais um pouco. O Rodrigo começou finalmente a desenhar a lona do Porto, e a Irene trouxe-nos comida! Obrigado! Acabámos a noite com uma improvisação a piano e voz, com o bichinho da música despertado pelas várias visitas que temos recebido. Ontem foi a vez do famoso Francisco (Pánčho) Babo do coletivo aqui da Rua do Sol, que nos acolhe. Na verdade decidimos dedicar-lhe o dia de hoje para a escrita, já que nos tinha dito que a sua entrevista podia ficar para qualquer dia. O dia ontem totalizou três entrevistas inteiras e intensas, o nosso recorde até agora, aqui no Porto. Já eram quase dez da noite quando a entrevista do Babo acabou. Depois fomos jantar ali ao lado e ainda voltámos para escrever o diário do dia anterior e acabar de deslindar a inacabável saga das lonas. Nisto já eram três da manhã e o dia de ontem fincava o de hoje.
Hoje foi realmente um bom dia para se pôr as coisas em dia, daí também termos passado a entrevista do Francisco de ontem (à noite) para hoje (de dia). Clarifique-se que isto só foi possível pois, sem sabermos, as duas visitas que tínhamos agendadas para hoje tinham sido canceladas: uma com a Mila Dores, que já nos tinha visitado, e outra com a antiga colega do Rodrigo, a Ana Cruz. A Mila anunciou-nos que as coisas tinham ficado apertadas e que, com pena, já não conseguiria vir. Já a Ana escreve que ia ter de ajudar o pai a matar um cabrito (ai!) mas ainda conseguimos agendar para a semana! Voltando então ao Babo, ficámos a saber muito mais da sua infância e do seu percurso até aqui. A Sara conseguiu descobrir que chegou a aprender piano, e que começou a tocar baixo porque faltava um na banda dos amigos, que depressa o convenceram a aprender (o heavy metal também ajudou). Deu-nos depois um som rasgado do elétrico a passar nos carris da foz, fazendo soar um metal agudo, que o fazia lembrar das viagens em dias de escola. Falou-nos da importância da desconcentração, que diz fazer parte da sua metodologia artística, tanto na visual como na sónica, as quais vai misturando, quando assim faz sentido. Inclinou-se em seguida para um mapa temporal do Rodrigo, onde indicava que músicos - solistas, naipes, ou mesmo variados grupos mistos - entravam e saíam durante uma peça que se dedicava à exploração das potencialidades tímbricas menos convencionais da orquestra. A orquestra do Francisco foi desta vez o baixo e o seu amplificador com equalizador por bandas. Tratou a “partitura” como se tivesse sido escrita propositadamente para o seu aparelho e apresentou-nos a versão bass drone music da peça. Tomou em consideração todos os parâmetros que conseguiu manobrar com algum grau de controlo e, mesmo antes do fim, disse contencioso “cuidado aí na placa, que isto vai apertar!”, antes de acabar com um “rumble” bem grosso que também constava no fragmento. Com o fim de tarde sem gravações, fomos então à caça dos sons mencionados pelos convidados mais recentes, já que há vários dias que não fazíamos trabalho fonográfico. Há cada vez mais gaivotas por filmar, pois estas estão claramente a ganhar em popularidade! Fomos então à sua procura em pleno contexto citadino, mas onde estavam elas? Depois de alguma procura por entre árvores e cimento, a Sara já filmava: gaivota no telhado, gaivota no parapeito, gaivota no semáforo, gaivota no poste de luz, gaivota no caixote do lixo, gaivota na reciclagem, gaivota na relva, gaivota parada, gaivota a fugir... Esta última ficava cada vez mais muda com o encurtar da distância entre ela e o Rodrigo, que já estava desesperado para lhes sacar algum som. Encetou então uma perseguição em passo acelerado e o animal, em vez de levantar voo, limitava-se a copiar-lhe o ritmo. Retornados ao Sol, depois de uma dúzia de print screens a todas as cenas capturadas, a Sara pediu ao Rodrigo que a ajudasse a nomear a favorita para o prémio da gaivota que ficaria documentada com entrada especial no diário! Ganhou a número 4. Saindo do Sol, que já se fazia noite, passámos ainda pelo Aliados para gravar os sons de veículos a passar sobre os paralelos que o Kiko com tanto pormenor nos tinha descrito. A Sara fixou-se na imagem, espigando-a bem para que ressaltassem os vários tons irradiados pelas calhas e pedras do passadiço. Continuando de bicicleta até ao Palácio de Cristal, ainda fomos encontrar o João Paulo Rosado com o seu contrabaixo, para uma noite Porta-Jazz e também para o relembrar de que ainda contamos com a sua presença musical aqui no Sol! Encontrámos o José Valente pela primeira vez no Sismógrafo, quando foi a um concerto da Sara já em 2015. Viu o trabalho dela e decidiu aparecer, sem isca promocional nem nada; uma atitude que deveríamos todos cultivar mais vezes. Hoje, mal chegou, começámos os três a tão natural sessão de recensão crítica, tal qual como na última vez em que nos encontrámos. Passámos espontaneamente da conversa livre para a gravação, mais estruturada, com a Sara. No mesmo tom, e com toque coloquial, o Valente avançou, contando-nos das suas memórias musicais, ricas em exemplos, referências, explicações, ilustrações e um tanto de comentários genuinamente chistosos.
Tocou-nos na viola alguns dos sons mais proeminentes do seu novo álbum, que disse estar para chegar ainda hoje à sua casa! Incluiu melodias da música “Eduardo”, grande amigo a quem esta lhe é dedicada em memória, e associada ali à Rua da Taipas onde passavam grandes serões até às tantas da manhã em conversa. Indicou-nos ainda vários sons do Porto (incluindo gaivotas), mas acabou por se dedicar à imitação dos maneirismos que ainda persistem um pouco por toda a verdadeira tasca desta cidade. Uma das suas reproduções fez-nos relembrar a canção “Há muitos turistas” dos Cú Branco, pois dizia o senhor que “os turistas foderam-me os croissants todos”. Porém, nem tal desvio nos safou das gaivotas. Voltaram a aparecer e, desta vez, por vias de um erro técnico qualquer, misturadas com sinos e reinterpretadas à viola. Vascolhando a “Taxonomia”, dedicou-se a uma estrutura temporal em que seis performers entravam com uma série de diferentes objetos performativos em alturas diversas. Como é valente, deu-se ao desafio de os ser aos seis, construindo uma complicada textura polifónica que o teve a falar, a tocar e a fazer numerosos gestos. Desdobrou-se com efeito em mais vozes do que podia e acabou por ter de parar numa altura em que o processador já ardia de quente, enquanto nos aguçava o ouvido com o pianíssimo mais ardente. Entre as visitas houve muita mais conversa. Chega o Kiko Pereira e, como se conheciam os dois, a coisa rolou e rebolou até termos mesmo que avançar. Marcaremos todavia uma atualização séria da conversa, já que esta teve de se cortar num ponto crucial da sua dramaturgia e desenvolvimento conceptual. Falámos da indústria musical, de como tende a tornar-se tipicamente impermeável à inovação. Lamentámos os efeitos secundários causados pela força popularizante de músicas como o fado, que se encontra bem alienado, simplificado, comodificado... está um pouco doente, contraiu uma febre tifóide ou algo do género, com nome em latim. Reparámos que temos todos saudades de uma certa imprevisibilidade que se dá quando há entrega total e autêntica àquilo que se faz. Como dizia ontem o Jorge, um “mergulho” que se tem de dar com paixão ou, como sugeriu o Kiko “um certo sarro e pó”, porque “quando a coisa está demasiado limpa...” O Kiko, antigo professor de canto jazz da Sara, surpreendeu-a de manhã com um mensagem a anunciar que sempre conseguiria passar cá no Sol! Já a não contar com tal visita, a Sara ficou radiante por recebê-lo. Foi sem dúvida uma grande entrevista. Com uma aura calma e plena, inventou um instrumento para falar da sua infância. Um baloiço, exemplificado com uma garrafa pendurada em pêndulo, a andar de trás para a frente... Lembra-se de cantarolar enquanto este lhe marcava o tempo, num ritmo oscilante. Disse-nos preferir as músicas alegres, mas de também se inclinar para as mais melancólicas. Gosta de rir e gosta de chorar. Comove-se de igual modo para um lado ou para outro: “é necessário o envolvimento” contou-nos. Escolheu um diagrama do Rodrigo chamado “constant motion chart”. Disse-nos que o achava interessante pois um gráfico em princípio é estático, mas este falava de movimento perpétuo. Notou que havia três cores diferentes, decidindo representá-las com ações cíclicas. Usou a voz, a garrafa-pendular que tinha acabado de construir, e atribuiu ao tráfego lá na rua um papel de acompanhamento. Sem saber, acabou por incluir um senhor que berrava uns palavrões, algo sobre alguém ter de lhe trazer não sei o quê. Construiu um ambiente sonoro que poderia com efeito durar para sempre. A vida todavia é curta e tivemos de cortar mais uma vez algo que poderia ter durado muito mais tempo. Às oito apareceu-nos o Francisco Babo, que já tinha estado para cá vir uma data de vezes. Como tem estado ocupado com a CCOP, e também por isso pode sempre usufruir da facilidade de gravar quando quiser, tem ficado para depois, e depois e depois... mas agora veio cá de vez! Só que esta fica para amanhã pois hoje o dia ficou cheio. Não percam o próximo episódio, porque nós também não! |
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