Apesar da limpeza do dia de ontem, o espaço ainda não estava bem preparado para receber a esperada visita da antiga e muito estimada professora do Rodrigo, Graça Mota! A Sara já limpava o pó do teclado do piano quando recebemos a mensagem dizendo que está doente e, que com uma viagem pela frente, teria de ter cuidado. Disse-nos no entanto que tem lido os diários e que acompanhará com gosto o desenvolvimento do resto do projeto. Foi uma pena, mas fica para a próxima! Entretanto a Sara já tinha pedido ao Andrew Nimmo, que aparecesse um pouco mais tarde, viesse a reunião entre antigos alunos e professores a prolongar-se muito para além duma gravação normal. Ficámos então à espera de o receber. A estória de como o conhecemos também é engraçada. Certo dia, antes do projeto ter oficialmente começado, estávamos a passar ali ao pé daquele quiosque perto das Belas Artes, onde nos disseram que podíamos colar vários cartazes a anunciar o projeto. deparámo-nos com um rapaz, muito atento, a tentar fotografar um dos nossos. Decidimos abordá-lo, a fim de lhe explicar o projeto, já que parecia estar tão interessado. Disse-nos que mora perto e que costuma tomar nota de tudo que acontece por aí. Dito isso, dispara o Rodrigo à sorte: “por acaso não és músico?”. E não é que era mesmo? A maior coincidência foi dizer-nos que é Londrino e que vive há só um ano no Porto. Sem estar à procura, encontrámos o Nimmo, e com duas semanas passadas pelo meio, manteve-se fiel ao compromisso, deixando-nos felizes por poder voltar a reencontrá-lo. Trouxe não só o saxofone mas também o seu pedal de efeitos. Mais à frente sussurrou-nos que na verdade o tinha comprado recentemente, apenas para tocar em registo música de fundo, quando fora convidado a ir dar conta de um grande esticão de tempo numa galeria de arte. Desta vez, sem certezas de que raios é que lhe pediríamos, lá trouxe o pedal das soluções, mas ficou contente por perceber que não ia ter que tocar meia hora sozinho. A entrevista decorreu toda em português para a peça da Sara, o que achámos impressionante, mas o Rodrigo deixou-o à vontade para que a segunda parte da gravação voltasse para a sua língua mãe, o inglês. Contou-nos das suas primeiras experiências musicas ao receber um pequeno teclado em que a “demo song” era um tema de natal do Cliff Richard. Depois de ter tocado a “So What” do Miles Davis, pairou um pouco sobre materiais da sua imaginação, com que por vezes acorda. Se não o largam, anota-as para mais tarde compor, para que continuem consigo. Com o apoio do pedal fantástico, ainda houve tempo para sacar do sax um som incrivelmente semelhante ao das gaivotas e com isto soubemos que estas tramadas vão claramente ganhar o concurso de popularidade fonográfica. Entretanto na “Taxonomia”, ao longo de uma conversa recíproca, desenvolveu-se uma coisa bem engraçada. Dando uso aos pés como o dá ao saxofone, marchou e tocou. Depois invertendo tudo, tocou e marchou. Ficámos ainda a saber que ensaia no STOP e ficámos de passar por lá um dia destes. Ainda fomos lanchar com ele à CCOP, onde estava o Babo e o Gonçalo (que gravou ontem). Nisto dá-se uma enchente de membros dos Cu Branco e afins, tratando dos preparativos para ir vender merchandise para Esposende. O Rodrigo já queria comprar uma t-shirt mas estava sem dinheiro. De volta ao Sol, esperámos a chegada do Jorge de Carvalho, a quem a Sara tinha convencido a vir de propósito de Barcelos, só para a gravação! Ficámos muito gratos pelo seu carinho e empenho! Apareceu com o seu amigo Miguel, que viemos a saber que é vizinho da Sara cá no Porto. Foi a primeira vez que sacudimos o pó da bateria que tínhamos pedido emprestada ao André Fonseca. Ainda nem o conhecemos pessoalmente para agradecer em condições! O Jorge arrancou logo com uma batida ao som cantarolado de Oasis, que se lembra de ouvir no carro do pai, em viagem, quando era pequenino. Depois disse-nos que o mergulho profundo na música deu-se ao ter conhecido o trabalho de Hugh Masekela. Deixou-nos bem animados com várias batidas de af ro-beat e surpreendeu-nos, por meio muita risada, com uma demonstração do ritual que pratica nas noites de São João. Não perde a oportunidade e põe-se a treinar com martelos toda a ordem de malhas na cabeça da multidão, já que é mais alto do que quase todos nós. Na Taxonomia, o Jorge interpretou um sistema de circunferências articuladas e objetos itinerantes em rotas concêntricas como se fosse o sistema solar. Na bateria, associou os planetas aos instrumentos e desatou a sugerir uma data de fenómenos possíveis, não só concebíeis mas perceptíveis aqui, entre nós, com som. Marte era o bombo alto, e Júpiter o bombo baixo. Os anéis de Saturno ressoavam pelo ride a fora, a Terra, ficou com a tarola e a lua com os pratos de choque. Tudo girou à volta do bombo de pé o tempo todo. Com o apoio do Miguel, houve eclipses e tudo - tanto de sol como de lua - a níveis de acuidade astrológica (e de técnica de bateria) estrondosos. Como tinha de ser, com o rapaz a vir de Barcelos de propósito, fomos todos jantar que foi muitíssimo animado. Depois passámos pelos Poveiros e encontrámos muita malta do folk. Aglomeravam-se nas escadinhas, adicionando e subtraindo instrumentos e vozes às modinhas que passavam como contas entre cervejas. Neste seguimento, acabámos por falar com a Inês Lapa, a quem já tínhamos pedido que cá viesse, e com quem agora já marcámos para Segunda-Feira! imagens de Sara Rodrigues
Foi de esfregona na mão que começamos no Sol, mas nisto o Rodrigo ouviu novamente o ruído das gaivotas e lembrou-se: “Vamos gravar a gaivota da Rita à Rua do Sol rápido antes que voem para longe!” Lá fomos nós de câmara e microfone nas mãos, a correr, mas quando lá chegámos o som parecia ter parado. Montámos o tripé de qualquer maneira e ficámos na rua à espera, de lente virada para o céu. Pombos, vários bombos a passar, mas nisto pairava uma gaivota solitária ao longo do céu azul. Demos por entendido que era esta a tal de que a Rita nos falava, a que tinha agarrado uma vez num osso e o comia por cima do telhado de onde morara. Ficámos satisfeitos, ainda que a sonoridade não tenha sido larga, e voltámos para o Sol. Nisto entra o Xico de rompante: “Mas isto são horas?! A Ana Deus esteve aqui à vossa procura!”. A Sara vai ao telemóvel e lá estava uma mensagem enviada ontem à noite: “Posso aparecer amanhã entre as três e as quarto da tarde”. Ainda não eram quatro mas já não havia sinal da Ana, foi por pouco... é uma pena. Tinha- nos dito que ia andar em ensaios a semana toda e ia ver quando teria uma abertura para nos visitar. Perdemos a oportunidade mas ficámos em contacto para a próxima semana, sem falta! Pensámos que hoje não teríamos gravações, pois o Babo tinha adiado a sua porque ia ter um grupo enorme a jantar na CCOP, mas afinal já havia uns quantos músicos alinhavados sem que soubéssemos! Disse que o Gonçalo também estava no café e disposto a ser entrevistado. Tínhamos imaginado que o dia de hoje seria dedicado à montagem das lonas que o Rodrigo tanto ansiava que chegassem - e que agora estão finalmente cá - para começar a escrever os seus esboços, mas a vinda do Gonçalo foi muito bem vinda! Já o tínhamos conhecido na semana passada mas tinha ido acampar para o interior. Diz que gostou bastante de estar no monte e que lá havia realmente muito animais, mais do que imaginara! Já trazia a guitarra consigo e foi sobre um chão agora lavadinho que tivemos a gravação com o espaço mais limpo até agora. Vir do campo para um “white cube”... cruzes credo. Contou-nos que a banda que tem também é uma referência ao cubo branco que é a galeria. São os “Cú Branco”, pareceu-nos apropriado, se bem que hoje não estava vestido de branco, como se costuma apresentar em público quando se faz acompanhar do resto da sua coletiva. A Sara contou-lhe que há um duo de críticas de arte e artistas bastante novas em Londres que se chamam “The White Pube” (pentelhos brancos) e que com certeza um dia teriam de se conhecer! A entrevista começou em grande com uma referência à Ágata que, apesar de não se lembrar, diz que lhe dizem que gostava de cantarolar quando era pequeno lá em casa da avó. A música não lhe estava muito nos dedos por isso decidiu “chamar a música” e serenou-nos com esta saída do Festival da Canção de que assume ainda gostar muito, desta não estávamos à espera! Fez também referência à música das Pega Monstro, por quem guarda uma grande admiração, mas o que mais nos surpreendeu foi mesmo a música autoral de marca “Cú Branco”. Apesar de ser o guitarrista e não cantar grande coisa lá na banda, conseguiu juntar os dois e apresentou-nos uma música sobre haver muitos turistas na cidade, que ficámos desde já a adorar. A Sara achou-a muito apropriada para a peça “O Estado das Coisas”, já que numa parte o Gonçalo cantava: “nem sequer tenho quarto para morar, nem um lugar para estacionar”, exigindo ainda: “one Americano please, un espresso s’il vous plaît!”. Depois continuava num rolo de anotações de todos os pequenos grandes pesos quotidianos. Decidiu por fim escolher o som dos carros a passar, aos quais já nos habituámos, aqui à porta do Sol. Podíamos ter simplesmente virado o microfone para o lado da porta, mas não seria a mesma coisa. Em vez, o Gonçalo saca o telemóvel do bolso e começa a esfregá-lo nas cordas para sacar um som motorizado. Não ficando completamente satisfeito, tentou ainda reproduzi-lo com a voz, e depois disso escolheu ainda o som da gaivotas, claro! Com o Rodrigo, escolheu uma sequência de seis quadrados, que pensou logo serem quadros de um guião. Descodificou pouco a pouco uma data de símbolos em que se encontravam setas, aros, pontos, áreas cobertas das mais diferentes texturas e, por fim - e pode-se dizer que um pouco a pedido - constrói em tempo real um guião corrido, contando-nos que nem o melhor detetive sobre todas as peripécias e complicações episódicas que acreditara estarem lá naquele fragmento codificadas. Com o Sol vazio por fim, seguiu-se o tramado rolo das lonas, que tinha de ser montado o quanto antes, pois atrasado já está e muito. O Rodrigo deu início às medições e aos cálculos. Dobrou, cortou, torceu, prendeu, esticou... Até muito lá para o fim do dia, ainda se via tudo mal parado, inacabado, com mau ar, feio, disfuncional, visualmente nocivo. Remendou, esticou mais, resmungou, rogou pragas, ficou preocupado, teve ideias más, e boas, corrigiu tudo, e acabou por conseguir, mesmo assim, por instalar uma das duas lonas, a nova, que ainda está em branco, à espera de ser tatuada cá no Porto. Fica a outra para amanhã, ai... (suspiro). imagens de Sara Rodrigues
De manhã fomos à praia para nos encontrarmos com as gaivotas, por indicação do Afonso que nos visitou ontem. Lá estavam elas numa rocha - ao contrário do mencionado por muitos músicos - silenciosas. Fomos para mais perto para ver se conseguíamos sacar-lhes algum som. A Sara filmava e o Rodrigo, com o gravador, foi se aproximando delas. Eventualmente começou a emitir algo parecido com aquilo que fazem. A páginas tantas uma começou a responder-lhe, guinchando e palreando, já a ficar chateada com a conversa. Não parecia estar a gostar da proximidade e, com olhar mortífero, decidiu levantar voo com umas tantas que a seguiram. O céu enchia-se então de gaivotas e guinchos numa sinfonia com o qual ficámos os dois maravilhados, era mesmo isso. À tarde voltámos para o espaço e tivemos mais visitantes do que nunca. O Tomé apareceu para mais um episódio do esvaziamento gradual do Sol mas, para contrariar a festa da banana, hoje as entrevistadas foram todas mulheres! Mal chegámos à nossa rua favorita, lá estavam a Mila Dores e a sua mãe à Porta da CCOP. Pareciam um pouco perdidas, porém estavam no lugar certo! Conversámos sobre o projeto enquanto o equipamento se preparava para mais um dia de trabalho. Quando uma pausa deu aso ao pontapé de partida, seguimos para bingo: "vamos gravar?". A Mila, um pouco confusa, pergunta-nos: “mas e... é... agora?". Tinha ficado com a impressão de que hoje iria apenas aclimatizar-se ao ambiente que embebe a gravação, que se faria depois. Não há problema! Marcámos para Sábado. Foi passar um "quality time" com a mãe, que todos concordámos ser muito importante nos dias que correm. De seguida apareceu a Sara Rafael com o seu bébé Korg bem aconchegado dentro duma camisola. Passámos um bocado a ver como ligaríamos tudo, sendo que não é sempre que nos aparece um bicho electrónico a tomar conta de tudo o que é instrumento e cabo cá no espaço. Fomos testando algumas formas de ter tudo a funcionar em circuito e entretanto foi-se-nos clareando a solução ideal. Viemos a perceber por fim que nos faltava um cabo jack, então fomos pedi-lo ao Francisco que nos resolveu a situação em três tempos. Obrigado Babo! Quando a Sara (Ro), perguntou à Sara (Ra) pelo som mais marcante o Porto, esta disse-nos que era a luz do fim do dia na Passos Manuel. Agora temos de nos desembaraçar desta... Uma Luz que é som... vai ser interessante a sinestesia que se segue. Hoje perdemos o por do sol mas vamos tentar apanhá-lo amanhã. Já na "Taxonomia" a Sara escolheu um fragmento com um esquema que dizia "When do musicians play?”, com as iniciais “BH” pelo meio. Questionou-se sobre o que poderia aquilo dizer e, como sempre, o Rodrigo, em vez de ajudar, serviu apenas para atiçar a sua imaginação em regime de liberdade radioativa. Com o seu banco de samples, a Sara apresentou-nos a seguinte proposta: "isto são cinco músicos jazz que, depois de um concerto a durar três horas, foram todos tomar um duche (BH = banho?) em conjunto". Tocou-nos a sua versão do que seria uma "water music" bem curtida e foi-se depois embora. Cá nos chegou a Rita Braga, que afinal era amiga da Sara de Lisboa, e tinham combinado aparecer no mesmo dia. Também a convidámos ao espaço no evento da Sonoscopia, foi uma noite em cheio! Tínhamos-lhe falado do projeto, mas uma pequena reconstituição dos básicos é sempre bem vinda. A explicação ia a meio e nisto, de cancela aberta, aparece-nos o Zé à porta com uma amiga. Esta perguntou- nos o que estávamos a fazer e por isso a explicação serviu para as duas. A Rita cantou e tocou, desta vez não ao ukulele mas ao piano. Partilhou connosco um tema que sairá no seu novo álbum já em setembro, quando se mudará para Londres, onde vivemos. Descobrimos que, como vai estudar para a Goldsmiths, vai passar a ser nossa vizinha! Por falar na Goldsmiths, chegaram hoje de Lisboa o Francisco e o seu amigo Mark, que também lá estudaram. Fomos jantar com eles mas foi difícil encontrar algo vegetariano, por isso acabámos por comer um bacalhau assado aqui perto. Bem bom, mesmo que um pouco salgado. De volta à Rita, mandou-nos ir gravar mais gaivotas, desta vez à Rua do Sol 69 e de seguida interpretou um plano estrutural da peça "Monkey Business" que a Sara e o Rodrigo criaram em colaboração. Fê-lo de duas formas. Primeiro, decidiu dar silêncio à trama política de que o trabalho trata, e por isso pregou-nos um "trecho" da 4'33'' do John Cage. Em segundo lugar, como estava ao piano e o fragmento incluía o instrumento a representar a instituição burocrática, espetou-nos a "Für Elise" do Beethoven, referenciando- a como música de espera para serviços públicos. Uma interpretação oblíqua e muito bem recebida! Mesmo antes de fecharmos as grades, houve algo de muito importante a acontecer: chegou o rolo das LONAS! FOGO, parecia que aquela m**** nunca mais nos caia nas as mãos! O Rodrigo ainda não as desenrolou, pois antes disso ainda há que limpar o chão muito bem. Mas já despachou o primeiro e mais importante teste, que foi ver se estas cabiam verticalmente enroladas no andar de cima do Sol. Não couberam... ou seja: o Rodrigo vai ter de ficar no andar de baixo e a Sara no de cima; uma decisão aguardada há uma semana, e que agora deixa tudo em pratos limpos. Coincide com o despedimento do calor agreste. No fim da noite, em vez de mais álcool, acabámos a folhear um livro do Miró e a beber chá. imagens de Sara Rodrigues
Levantámos voo em direção ao Sol e em fios de minutos cá nos bateu à porta o Pedro! Não estávamos à espera que aparecesse, pois não tínhamos visto o email que nos enviara de manhã a avisar que cá estaria hoje. Conhecemo-lo há dois dias na Sonoscopia e falámos-lhe do projeto. Pareceu-nos um pouco reservado em primeira instância, mas sempre cá veio e por isso ficámos contentes! Entrou e foi quem mais nos perguntou sobre o projeto. Falámos um pouco e mostrámos-lhe os vídeos da iniciativa do Funchal, ao que reagiu, pedindo-nos que não captássemos a sua imagem da mesma forma, tão documental, tão direta. Aceitámos a condição, e com isto a Sara começou a construir um plano em que apenas as suas mãos davam a saber daquilo que dizia. O enquadramento até funcionou bem! Explicámos-lhe no entanto que o projeto era sobre pessoas, e que fazíamos questão de ter presente o nome de cada um, enquanto participante. Disse-nos então que usa vários pseudónimos, e que hoje em entrevista seria o Pedro Dias. Na "Taxonomia", escolheu um fragmento com a estrutura sintática que informa o desenvolvimento da peça-jogo "WE HAVE 15 MINUTES TO KNOW WHERE IS THE FUCKING BOMB!!! (Or else, you know... all these people die." Não quis entrar por abordagens performativas - assim de forma explícita - e por isso restringiu-se a uma descrição objetiva. Pode-se dizer que optou por uma leitura à primeira vista, com toque de arqueólogo, em vias de desvendar a funcionalidade do fragmento que tinha em mãos. Ao passar para "O Estado das Coisas", confessou não se sentir confortável com a intimidade proposta pelo mecanismo da peça. Quando a Sara quis saber o lugar das suas primeiras memórias musicais o ritmo abrandou. "Numa aldeia", só não sabemos onde... Disse querer entrar pela ficção a dentro, mas a Sara não estava muito para aí virada... Apesar de ser uma intervenção artística, não era bem esse o propósito da peça, então a entrevista ficou por aí, já que o Afonso Almeida também tinha chegado com o seu violino. Conhece a Sara desde os cinco anos de idade e começou a estudar violino ainda antes, aos três, e desde então nunca o largou! Estudou em Londres, como nós, mas agora vive no Porto e faz parte da Orquestra do Norte. Tocou desde Bach - cujas "Allemande" e "Chaconne" são das peças favoritas - a Tchaikovsky, de quem tem sempre um concerto na manga, preparado para enfrentar as provas de acesso a cadeiras de orquestra. Tocou bem que se farta, mas mesmo assim não aprovou a sua própria prestação, pois na falta da bendita almofada - de que se tinha esquecido - ficou numa situação tramada para bem segurar no bicho quando as mudanças rápidas e constantes de posição foram necessárias. Ainda nos incumbiu de ir gravar gaivotas na foz, que prontamente imitou (e bem) com o violino! Com o Rodrigo, escolheu um estudo de texturas que interpretou melodiosamente, tomando particular atenção à microdramaturgia da forma, que muito atentamente capturou em segundos. Confessou-nos já ter muita experiência na interpretação de música contemporânea, o que não nos surpreendeu, pois a prestação foi curta e grossa, cheia de um saber fazer embebido de memória tanto cultural como física. Mantendo o ritmo do dia, mesmo antes de sair o Afonso, o Vitor Pereira já nos aparecia à porta, já que há dias o tínhamos ido encontrar na Casa de Ló a tocar com um trio de jazz. Na verdade também mora em Londres, e foi aí que a Sara o conheceu à vários anos atrás, foi uma boa desculpa para se voltarem a encontrar! Explicámos-lhe o conceito do projeto e, descobrindo com alguma ansiedade que iria ter de vasculhar o seu passado assim do nada, decidiu começar pela "Taxonomia". Rapidamente encontrou um pequeno diagrama que estipulava relações funcionais entre formas geométricas, produzindo uma rede de conexões entre elas, em que várias direções são sequencialmente possíveis. Interpretou os vários símbolos, tocando "malhas" com características diferentes, das mais dispersas, às mais concisas. Trabalhou texturas, âmbitos intervalares e brincou com noções de densidade. Com a Sara, teve alguma dificuldade em lembrar-se dos fundos lá de trás mas foi muito corajoso ao mergulhar de cabeça nas suas próprias memórias, algumas das quais reconstituiu engenhosamente à guitarra. Ainda nos encontrámos com a Sara Rafael, que até muito recentemente vivia em Viena (não Viana). Agora está no Porto para ficar pelo menos um ano - diz - ou mais, quem sabe... Veio para falar connosco sobre a natureza do projeto. Queria saber se, não se auto-proclamando como música mas pensando em si como uma pessoa que produz sons, poderia participar. Deixámos bem claro: "Claro que sim mulher!!" Agendámos já para amanhã. Vai aparecer aí com o seu estaminé de teclados! Subimos os três ao bar, e lá estava o Francisco a malhar bem na guitarra. Relembrámos o nosso encontro no Sol e ainda recebemos mais uma enchente de músicos hipotéticos, que começam a aparecer que nem cogumelos. Vamos ter de ter cuidado! Como estava com um amigo com quem toca, também já o temos na mira! Após de se terem ido todos embora, ficámos no espaço a tentar instalar as colunas. Já tínhamos tudo pronto: o berbequim, as brocas, as buchas, os camarões, os cabos de aço, os fios de algodão, os cabos de coluna extra que comprámos hoje na rua da Alegria... Mas a meio do serviço a coisa começou a apartar-se da meta imaginada. Aglomeraram-se as dúvidas, as incertezas amontoaram-se, e pá, a coisa não ficou pronta hoje. É que temos de esperar pelo RAIO DAS LONAS!!! que ainda não chegaram... Esperemos que cheguem amanhã, porque se não, o Rodrigo começa a passar-se. imagens de Sara Rodrigues
Domingo é aquele dia de descanso, pelo menos para os portugueses, e o sol parecia não dar tréguas. Mas como o projeto não pode abrandar, continuámos no Sol por Domingo a dentro. Tínhamos combinado gravar o Francisco Babo, mas entretanto desencontrámo-nos na hora do lanche (fizemos uma pausa na hora errada), e só mais à noite percebemos que ele tinha andado à nossa procura. Já foi lá para as sete da tarde que, sem noticias do Francisco, pensámos “olha, vamos aproveitar para gravar a Sara, que para todos os efeitos também é uma música do Porto, apesar de que já ande imigrada à quase dez anos!” O Rodrigo já tinha sido gravado no ano passado na edição do Funchal, visto ser de lá, e na altura a Sara ficou a ouvir. Esperou um ano para conseguir fazer parte do projeto, por isso prontamente se dispôs a ser gravada pelo Rodrigo na sua própria peça. Achou que entrevistar-se a si própria seria um tanto ou quanto estranho e até psiquiatricamente duvidoso. À última da hora, houve nervos a dar á costa, o que tem piada porque diz sempre aos entrevistados que “é uma coisa mesmo informal, não há nada que possa estar mal, o que sair é autêntico!”. Na verdade quase que fez batota e foi ver uma partitura da peça “Polnisches Lied” do Hiller à internet, que é uma música que os seus alunos de piano escolhem sempre, dentro das opções que lhes são dadas no sistema de avaliação do ABRSM, grau 3, grupo B - peças entre os períodos Classico e Romântico. Tem graça ser a música que mais toca, pois que no fundo não toca mesmo. Só exemplifica pequenas partes aos alunos e diz-lhes “mais forte aqui, com crescendo, cuidado com essa nota!”. Safou-se na interpretação, mas claramente a peça não estava estudada...! Pontos para os alunos que dão ao litro todas as semanas nas aulas, porque com esta estória de só se mandar bitaites, não se vai lá... A mãe da Sara por acaso também veio ter ao Sol, e acabou por assistir à entrevista. Mandava-a sempre estudar piano quando era pequena, e se não tivesse sido ela, a Sara não iria hoje em dia conseguir dar as aulas de piano que tanto a sustentam! É que para todos os efeitos, a música contemporânea e a performance ainda não servem como suporte mensal fidedigno. A primeira memória musical de infância veio também por influência da mãe, ou memória induzida, já que pelos vistos tinha um ou dois anos de idade quando compôs o seu primeiro poema-canção, foi: “Ao lua lá lá lá, papá, mamã, woo woo, quá quá”. Eram as coisas de que mais gostava: a lua, o pai, a mãe, os comboios e os patos. A Sara também sempre gostou de cantar, e dizia que iria ser cantora, isto antes de se entregar às experimentações maradas e a fazer projetos como este, nos quais só arranja maneira de se inserir como cantante à socapa! A mãe diz sempre “nunca mais cantaste, gostava tanto de ouvir...!” A música que escolheu como a mais marcante é atribuída à Nina Simone, que tantas vezes a influenciou a puxar pela voz. Indecisa entre a “Wild is the Wind” e a “Feelings”, decidiu cantar as duas para depois poder escolher, e dedicou-as ambas ao pai, Alexandre Rodrigues, que está sempre presente com ela em espirito e em arte. Deixou ainda em nota de rodapé uma famosa frase que a Nina largou quando cantou em Montreaux Jazz Festival em ’76: “when a robot gets itself together, and we get to the middle, where we have forgotten all our feelings of love, you will help me yeah?”. Depois continua mais a frente com outra intervenção: “I can’t believe, the conditions, of a situation, that demanded a song like that!” Lembrou-se ainda dos sinos, que tocam sempre na igreja em frente a sua casa quando vem ao Porto, ora pela manhã; ora pela hora em que se deita. Parecia que ultimamente tinham estado desfasados; ora tocavam antes da hora, ora faltavam badaladas, ora tocavam mais lentamente ou a sofrer de uma certa taquicardia... Foi um dia e tanto, difícil, com o calor que se punha, mas sempre prazeroso de se rolar. Acabámos por jantar na CCOP, onde a Leonor estava a fazer um arroz de marisco delicioso pelo qual ficámos muito agradecidos. Ainda voltámos ao espaço para gravar a intervenção da Sara na peça do Rodrigo, que foi nada mais nada menos que a vocalização da sua própria tessitura vocal, que o Rodrigo uma vez tinha registado em pauta, a fim de informar uns compositores com quem os dois colaboraram em 2016. A interpretação foi um relâmpago, que em vez de descer, subiu dos registos mais graves e pouco sonantes, aos mais agudos e penetrantes. O Laranjeira e a Manuela deram-nos o prazer de estar presentes para assistir, e gravar excertos do momento com a famosa câmara que tudo vê. Sem darmos por isso já eram duas da manhã e ainda falávamos com a Manuela sobre o universo e o cariz individual e espiritual de cada um de nós humanos. imagens de Sara Rodrigues
Hoje quando chegámos ao Sol tivemos duas novidades. Uma chegou-nos com a entrada do Francisco Babo, que já se tinha reanimado depois de ter estado de cama. Até estava com mais vida do que nós, que já não podíamos com o calor… Disse-nos também que lá em cima na CCOP estavam duas das senhoras integrantes do coro que cá acontece sempre aos Sábados. No entanto hoje não estava para haver cantoria pois em Agosto descansam todas a voz. “Anda tudo paradinho” confessou-nos a Dona Iría, que estava lá no bar, acompanhada da Dona Melga (diz que nunca lhe chamaram de Maria, o seu nome verdadeiro!). Estavam a ler o jornal quando o Rodrigo as abordou em modo relâmpago durante a hora do lanche. Assiduamente bem sentadas, juraram “nós cá levamos o nosso ensaio muito a sério!” e prontamente abriram o caderno das canções populares. Tínhamos estado à espera do momento em que entrevistaríamos alguém com esta quantidade de sabedoria tradicional, e portanto não perdemos a oportunidade. Não sem alguma insistência - e um empurrãozinho por parte do Zé - conseguimos pausar aquela erupção rapsódica e trouxemo-las cá para baixo, a ver se ainda conseguíamos capturar alguma daquela autenticidade incandescente. A Dona Melga prontamente se sentou na cadeira da entrevistada. Ainda antes de começarmos, já estava a cantarolar. Decidimos que faria mais sentido começar com a peça da Sara, que pergunta explicitamente pelas primeiras memórias musicais dos participantes. “Ah, aqui no caderno não há nenhuma!” respondeu. Não queríamos que fosse do caderno, tentámos explicar que até podia ser só um refrão, ou uma melodia trauteada se se lembrasse delas. A Dona Iría, que nos tinha garantido que não queria ser entrevistada, ficou por de trás da câmara, mas rapidamente percebemos que queria fazer parte da sessão. Tentava dar dicas e ajudas, ao que Dona Melga ripostava com “não não, isso não é da minha infância!”. Folheando o caderno encontrou algo que pensamos ter sido associado à pergunta, mas sem certezas: “Ó rama ó que linda rama, ó rama da oliveira…” A Sara não conseguiu perguntar-lhe muito mais sobre a tal memória, mas ficámos a saber que cresceu em Pedras Salgadas, perto de onde saem as águas das Pedras Salgadas, e que é muito lindo! Tentámos então prosseguir para a segunda música, uma que lhe fosse marcante, mas a Dona Melga parecia já não estar a ouvir. “Outra! Ó Ferreiro guarda a filha, não a ponhas à janela…”. Quando perguntámos pela música que mais cantam no coro, berrou: “São todas! Vai! Vou cantar esta: Não vás ao mar Toino, podes morrer Toino podes f… fico sem par Toino, que vou fazer Toino?” Não parecia de todo ser a que mais cantavam, haviam algumas hesitações, mas tivemos que aceitá-la como resposta! Por fim ainda tentámos a nossa sorte e pedimos à Dona Melga que nos apontasse algum som da cidade que achasse característico, mas a senhora só queria cantar! Ou não nos ouvia mesmo ou parecia não querer ouvir. Dona Iría já respondia por ela, e imitava-os na perfeição… Pelo meio desta dinâmica insólita, percebemos que a entrevista não chegaria a um fim concreto, e nisto lá vem mais uma canção: “Ao passar a Ribeirinha pus o pé, molhei a meia pus o pé…”. A senhora parecia uma autêntica jukebox! Já depois de termos cortado a gravação, a Dona Melga continuou a cantar por cima da Dona Iría, que tentava falar connosco. “Cala-te Melga!” dizia. Foi complicado, mas muito divertido. No fim quase que convencíamos a Dona Iria a gravar, já que parecia estar a perceber melhor o conceito da peça do que a amiga, mas recusou-se várias vezes. Dizia que costumava cantar bem mas que a voz já não é o que era, que havia vozes no coro muito boas, que deviam ter vindo todas gravar. Na verdade só queríamos gravações individuais, e a voz não tinha que ser a melhor, mas falhámos na persuasão de as fazer gravar memórias que não necessariamente nos fossem entregues invariavelmente em forma de canção… No fim pareciam contentes, voltaram para o café e disseram-nos que já tinha valido a pena ter vindo, apesar de durante a entrevista termos ouvido a Dona Melga suspirar: “Ai meu Deus! Vocês fazem-me cada uma…!”. Depois de mais umas horas no Sol a testar o equipamento no espaço, apareceram o Francisco e o Zé à vez, a relembrar-nos do festival da Sonoscopia num convento que há ao pé de Francos. Fechámos a “loja” e fomos para lá de bicicleta, mesmo que os outros tenham preferido ir de carro ou de metro! Parecia uma pequena quinta abandonada, com cabras e tudo. Por entre o som de bateria experimental e eletrónica, ainda ouvimos uma voz operática a cantar e a sussurrar em espanhol e italiano. Mas o melhor da noite foi sem dúvida a última atuação que vimos, que começou com um discurso dado por uma figura vestida de bata branca até ao pés. Falou-nos do punk, do rock, de sexo, e do spider-man em Ibiza. Deixou-nos o inesperado addendum: “há que estudar, é preciso ler muito, é importante analisar tudo o mais que se puder!”. Quis convencer uma jovem audiência de que é imprescindível conhecer o século XX mas, antes de finalizar o demorado palratório, era já abatido pelo público, que só queria que o concerto começasse. No seguimento de um premeditado e estruturado ato plunderfónico, acabaram com uma inesperada série de interpretações ousadas, que incluiu uma tentativa de performance chamuscada da Clapping Music do Steve Reich e uma leitura serrada da Stripsody da Cathy Berberian. Segurámos a nossa posição por meio de uma massa gradualmente escoante e permanecemos até ao fim a fim de convidarmos o Paulo e a Filipa a virem ao espaço. Ficámos entusiasmados por terem aceitado a nossa proposta, e agora contamos com eles para o próximo episódio, que vai com certeza ser surpreendente! imagens de Rodrigo e Sara
Máxima 34ºC e mínima de 21ºC, mas nada de praia. Encontrámo-nos com o Daniel Osvaldo, que apareceu no espaço logo pela manhã. Apanhou o comboio de Baião para o Porto de propósito, e ia voltar logo a seguir, ficámos muito gratos pelo esforço de vir ter connosco ao Sol. Antes da entrevista ainda repetiu algumas vezes: “isto mete-me um bocado de medo…”, mas acho que conseguimos convencê-lo do contrário. No fim garantiu-nos que até tinha sido divertido! Descobrimos que trocou o trompete pelo bombardino, e que agora se dedica mais à composição, obras para orquestra e banda filarmónica. Contou à Sara que os sinos são aquilo que mais o fazem recordar a infância, e que os dos funerais e casamentos têm toques particulares. Só ficámos sem saber o quanto eles variam de concelho para concelho. Prefere significativamente mais o som de cantos gregorianos à peça “Amigos para Sempre”, porém tem de a tocar no bombardino sempre que ensaia com a banda filarmónica. Como não trouxe nenhum instrumento desta fez, teve que cantar os vários excertos com a voz. Quando chegou a vez de escolher um dos esboços do Rodrigo, decidiu-se por um diagramazinho a explicar como funciona acusticamente a série de harmónicos em cordas segmentadas, naquele caso específico, nas de um piano a ser tocado com flageolets. Perguntou-nos se podia usar lapis e papel, e prontamente sacou umas pautas musicais da mochila e começou a anotar: “1/5, 1/8… vai ser o 1º de Abril, ora 1 de Agosto… vai ser um ré, com um lá!”. Por entre contas e atribuições desenvolveu um esquema que depois de pouco tempo estava pronto para ser tocado. Agarrou no sintetizador e, com som de trompete, que não trouxera, fez soar várias notas em combinações diversas. Ficámos contentes com a prestação, mas daí a nada já teve o Osvaldo que se despedir. Continuámos o dia com mais umas compras para o espaço: camarões (para agarrar as colunas ao teto), alicate, fita-cola. O Rodrigo pôs-se com contas e chegou à conclusão de que nos faltam vários metros de cabo de som (é que o espaço do Funchal tinha uma geometria bastante diferente). Mediu-se então o espaço ao centímetro, fizeram-se diagramas e cálculos. Agora tudo se encaminha. Quase nos desencaminhámos numa ida a Famalicão em vias de buscar um piano para alugar durante o mês de Agosto. Como a loja só o queria alugar por três, empenhámo-nos um pouco mais na pesquisa e descobrimos um outro mesmo aqui ao lado! Com a ajuda da Irene, trouxemo-lo prontamente para o espaço e aqui está na sua nova casa. Bem vindo Kawai [marca: quer dizer fofinho em japonês]. Deixámos o Sol ao fim-da-tarde para irmos de bicicleta até aos Aliados, pois o Osvaldo tinha-nos apontado como som mais característico do Porto os autocarros a descer e a subir na avenida. Na verdade ele deu-nos uma lista de sons, que incluía gaivotas, sirenes de ambulâncias e comboios. O último - disse-nos - só tem mesmo sentido para quem anda neles. Decidiu-se então pelo meio de transporte mais corrente na cidade. Já nós, estamos de bicicleta, um transporte que notamos estar a difundir-se mais por cá. O Rodrigo conta que, quando estudava no Porto em 2012, era o único a fazê-lo, mas pelos vistos o Tomé também pensava o mesmo… imagens de Sara Rodrigues
Hoje foi o dia mais quente do ano, dizem, mas logo a seguir também acrescentaram que esse seria amanhã… "Foda-se vamos morrer todos" pensámos. Em continuação do dia de ontem, seguimos com o desempacotamento do resto do equipamento. O reaver de todo aquele cobre trouxe-nos memórias das alfândegas em que nos retiveram mais do que vezes suficientes. "O que é que vem a ser isto!?". Dizer que aquele rolo (que mais parecia uma bomba) eram sete quilos e meio de cabos de som em tordo de um tubo de cartão que antes suportara duzentas gramas de papel de alumínio nunca foi suficiente. Desencaixotámos todos os altifalantes. O Rodrigo organizou-as por tipo e tamanho. Percebeu também que as que usará tinham um logo branco horroroso no centro do cone pequeno. Teve que as pintar com um marcador permanente. Os visitantes notarão que não está perfeito, mas o que está, está melhor que uma cagada de marketing. Fizemos medidas mais aguçadas ao espaço, tanto a régua como a olhómetro. Tentámos decidir assim a quente quem ficaria no andar de cima e no de baixo. Chegámos a uma meia conclusão. Amanhã quando chegarem as lonas saberemos melhor, é que podem muito bem não caber no andar de cima. Como hoje não tivemos gravações, a Sara aproveitou para editar as de ontem, do João Costa. Conseguiu verificar como irá ficar a nova etapa da sua peça, que nesta edição contará não só com som mas também com projeção de imagem! O Tomé ainda veio buscar umas últimas coisas. Numa conversa sobre querermos representar a grande variedade de músicos que existe no Porto, disse-nos que deveríamos convidar as velhinhas que cantam no coro aos sábados cá na CCOP. Vamos ver se as apanhamos e trazemos ao Sol para gravar. Também soubemos dos senhores do fado. Vamos tentar pescá-los também! Visitaram-nos várias pessoas hoje. A maioria eram estrangeiros a viver no Porto. Brasileiros a estudar nas belas artes, artistas britânicos e italianos que depois de uma residência cá, nunca mais arredaram pé da cidade. Ficámos por eles a saber da cena artística local que se monta, ou se tem montado sem que saibamos… Temos de começar a conhece-la melhor, parece que os estrangeiros somos nós! Será uma daquelas aventuras no nosso próprio (novo) canto. Ainda antes de se por o sol, o Zé deixou-nos uma dica: "churrasco?". Não soubemos logo porque nos chegaria uma dádiva deste género mas pensámos: "BORA!". A noite chegou, deixámos o Sol a trancar-se pelo Tomé, e subimos ao pátio. Com reforços a vir do minipreço, as cavalas estiveram sem dúvida no seu melhor. Ficámos a saber que o Pierre uma vez afugentou toda a gente da cave do Sol com um concerto noise. Em conversa com ele, percebemos que seria interessante chamá-lo para o entrevistar, mas agoniza-se com a presença dos microfones, e ainda mais com a das câmaras… vai ser difícil, mas vamos continuar a tentar! A noite estava quente, um pouco de mais, mas boa. O diário foi escrito ao som de sardinhas a arder num campo de futebol de cimento. De repente, demos por nós e tudo isto era o aniversário da Manuela! Chega de repente com um bando de gente bem animada. Comem, bebem, dançam e pedem música. Foi uma festa, portanto! Que o Zé é o patrão ninguém questiona, mas hoje a Manuela foi a rainha. A Francisca aproximou-se entretanto sempre dançando, e vivamente nos apresentou a um grande hit obscuro da Ágata: "Mexe-te mais um pouco". imagens de Sara e Rodrigo
Hoje foi o primeiro dia oficial de "Taxonomia, O Estado das Coisas", apesar de já estarmos a preparar o projeto desde que chegámos ao Porto, há cerca de duas semanas. O Zé tem nos dado um grande apoio com a nossa chegada à Galeria do Sol, e entretanto já tivemos o prazer de conhecer vários membros do coletivo e algumas das figuras míticas da malta do CCOP. Há algo de mágico aqui; é que já nos sentimos em casa no primeiro dia de funcionamento. O CCOP é o melhor sítio da zona! Começámos de manhã a organizar tudo o que havia que levar para o espaço, mas antes ainda tivemos duas paragens para gravar alguns sons para a peça "O Estado das Coisas" da Sara. A primeira foi logo à frente de sua casa, já que para a Sara o som mais característico do Porto é o dos sinos que tocam de hora em hora na Igreja do Carvalhido. Estranhamente, o sino parecia não estar a cumprir a quantidade de badaladas certas, nem de forma regular, nem à hora exacta… Contudo, o som ficou muito bom na gravação! Sabendo que o João Costa viria gravar à tarde, a Sara antecipou-se e perguntou-lhe logo por telefone qual o som que para ele era mais característico do Porto. "Obras, a toda a hora" desde que se lembra. Obras, durante sete anos, mesmo à porta de casa, pela Torrinha, por Cedofeita, em todo o lado. Hoje fomos encontrá-las na Bombarda, que parecia estar a ser bombardeada. "Não é nada difícil encontrar obras no Porto hoje em dia" disse-nos o João com um tom agridoce. Como ainda não tínhamos o dead cat, e punha-se um vento forte e quente, o Rodrigo enfiou o gravador dentro dum arbusto que fez a vez (e bem). Estávamos de bicicleta, então a mãe da Sara deu-nos uma grande ajuda e trouxe-nos o equipamento todo no carro. O Tomé desmontou a sua exposição "Metodologia de Tomé, Tomé & Friends Lda", de que gostámos muito. Com a ajuda da Leonor, entre caixas de cartão e fita cola, o cão Sirius também animou o ambiente com as suas três patinhas. O Rodrigo ainda lá teve o prazer de levantar a história da arte - composta de dois calhamaços de cimento, um para cada braço - que pela sua estimativa, não deve pesar mais de vinte kilos. Lá para as sete da tarde gravámos o João Costa, que veio com a sua mulher Lena da Bielorrússia. Madeirense exilado no Porto há mais de dez anos, a ir para quinze, o João é realizador. Também é especialista em futebol e dinamiza da Casa da Madeira do Norte. Contou-nos que faz sempre o som e a música para cada um dos seus filmes, normalmente munido do seu teclado midi. A Sara surpreendeu-se pela sua fixação de longa data pelo Jurassic Park. Gosta tanto do filme como da música, que prontamente nos cantarolou. Também não estava à espera do alto teor de ruído que o João é capaz de produzir, depois de nos dar uma demonstração da música improvisada que costuma fazer com o Marco (Panikes). A peça do Rodrigo começou hoje também, porque teve de ser, mas a meio gás. Ainda andam pelo Atlântico duas lonas de seis por dois metros cada, que usa como suporte de escrita, e sem as quais "Taxonomia" não se desenvolve da forma devida. Uma ficou completa na edição anterior, no Funchal, outra vem pronta para ser desenhada. Chegam na Sexta-feira, se Neptuno quiser. Ainda assim, houve que avançar e por isso o João escolheu e interpretou um fragmento da coleção enquanto olhava para um ecrã de computador. Não tem a mesma piada, mas fez o efeito. Agarrou-se a um mapa zona da Barreirinha (uma antiga zona balnear do Funchal) onde trabalhou no café do pai durante muitos anos. Desatou que nem um brocador desenfreado a nos encher de tanto lembranças corriqueiras como contos e comentários. Também propôs correções topográficas, pois encontrou erros crassos no mapa do Rodrigo. Por fim fomos jantar com eles. O João antes de ir embora disse: "Pega lá esta piada para acrescentares no diário: Sabes porque é que os mergulhadores quando mergulham vão de costas? Porque se mergulharem para a frente caiem para dentro do barco!" imagens de Sara Rodrigues
Como ´Taxonomia, O Estado das Coisas´ é na sua base um projeto de criação-investigação, e como os nossos princípios de ação portam sempre um tom tanto arquitetónico como experimental, a Sara não fechou por completo a possibilidade de remexer na forma da sua peça. Agora pondera vir a desenhar linhas retas, longas e finas entre todos os pontos representantes das cinco respostas que cada participante deu na sua entrevista. Isto quer dizer que os números associados a cada símbolo - atribuídos a cada pessoa segundo a ordem em que foram entrevistados - ficarão então interligados, dando origem a 30 polígonos de formas várias, sobrepostos uns aos outros. Assim, pensou, pode ser que apareçam ainda mais alguns pormenores interessantes a nível sociológico. Olhando do lado de fora, o espaço branco (e agora marcado) continua a fascinar os passantes pela Rua dos Aranhas. Ficam apreensivos em primeira instância, mas nós, se em vista da oportunidade, chamamo-los atenciosamente cá para dentro. Quanto a termos as portas abertas, a Rua dos Aranhas é um grande sucesso de captação de públicos. Ainda por cima, estamos a falar de públicos que são verdadeiramente capturados (como peixes) pela nossa ‘rede’ mais eficiente: a predisposição que temos para interagir de forma viva e sincera com as pessoas que nos surgem à porta. É que foi por meio de inúmeras conversas e discussões que deixámos claro que a nossa abertura é muito mais do que uma disposição física. Trata-se de uma responsabilidade sociológica e formativa que assumimos perante a cidade e os seus habitantes. Realmente, como nos diz o Manuel, a nossa presença constante aqui na PIPINOIR tem gerado de facto uma actividade cultural intensa. Do valor criado ainda não temos uma noção precisa, contudo, a cada dia que passa, chegam-nos mais visitantes curiosos a tentar perceber o que se passa cá dentro. Vale a pena dizer que o espaço em si, esse, também tem que se lhe diga e, tal como se parece agora - ocupado por uma peça tão não-convencionalmente chamativa - acabou por cativar os mais diversos tipos de gente. Foram desde jornalistas, arquitetos, engenheiros, economistas, senhores e senhoras de todas as idades, crianças, tantos turistas diferentes, juristas europeus, promotores de eventos internacionais, aos mais variados artistas e produtores estéticos… Depois de cerca de 30 dias, o nº 17 da Rua dos Aranhas foi-se-nos entranhando. Primeiro, através por certo de todo o pó depositado nas suas superfícies, que limpámos com vontade. Com os dias, como é natural, fomo-nos também ambientando ao caráter da rua: aos vizinhos, aos negócios que nos circundavam, até aos seus sons e imagens sempre presentes. A Dona Mécia foi um primeiro ponto de paragem onde muitas vezes fomos parar não só para comer mas também para nos ‘emprestarem’ um bocadinho de net, com que tantas vezes conseguimos publicar pela madrugada muitos diários como este. A Opan, depois de tantos dias, apareceu como uma boa opção pontual. A nossa experiência desta casa foi fortemente marcada pela relação que desenvolvemos com a equipa que se formou em volta das atividades do projeto. Desta fizeram parte o Manuel e o Eduardo da PIPINOIR, que apareciam para ver se alguma coisa era precisa, o Diogo, com o seu apoio nos telefonemas e marcações, a Mariana, que ajudou na comunicação, promoção e que ainda vai tratar de parte da documentação e, claro, a Helena que é uma excelente produtora executiva nata, e o Rui, que não conseguiu evitar produzir uma considerável parte do material documental do projeto, para além de andar a caçar baratas e a fazer serviço público varrendo a rua das suas persistentes beatas. Ainda mais complexo que isso (e de forma tão rica que é para nós impossível descrevê-la com justiça aqui), foi todo o envolvimento que houve entre o projeto e os participantes. Essa sim, foi a grande nuvem de actividade cultural que varreu completamente a casa e a sua rua. Atravessou - sabemos nós agora - a cidade por alguns dos seus canais predilectos e atingiu montes de gente de formas surpreendentemente impactantes. Produziram-se músicas e sons completamente inesperados, e ouvimos estórias que ficaram gravadas com relevância latente perante gerações futuras a nível regional e, quem sabe, nacional. Estamos felicíssimos por tudo isto pois o balanço parece ser só inteiramente positivo. Agradecemos a todos os que acreditaram no projeto, aos que o apoiaram de uma forma ou de outra e, para todos os que se disponibilizaram para fazer parte dele com uma entrega tão grande, reservamos um lugar especial cá dentro. Aprendemos muito e cresceu-se-nos sem dúvida uma vontade de fortalecer todas estas relações no futuro, e de continuar a par dos esforços e dos sucessos de cada um. Num instante lá se foi um mês! Em breve partiremos para Lisboa. Deixamos cá um pouco de nós e levamos connosco um pouco do Funchal, com um cheirinho da Rua dos Aranhas, suor da PIPINOIR, e muitas, muitas memórias. Muito obrigado a todos os que participaram e estiveram envolvidos no projeto: Helena B. Camacho, Rui A. Camacho, Mariana B. Camacho, Diogo Castro, Duarte Nuno, Cristina Vieira, Filipe Ferraz, Daniel Gonçalves Melim, Fernanda Martins, José Camacho, João Viveiros, Carlos Jorge Pereira Rodrigues, Roberto Moritz, Roberto Moniz, Lara Carolina, Lídia Araújo, Tozé Cardoso, Rosa Madeira, Ricardo Correia, Virgílio Caldeira, João Caldeira, Paulo Gouveia, Sophie Rose Bayntun, Luís Abreu, Alexandra Barbosa, Emmanuel Mejía, Tiago Castro Lopes, Mariana (Pipocas) Andrade, Marta Faria Capelo, Miliza Mendes, Natacha Gonçalves, Lidiane Duailibi, Norberto Gonçalves da Cruz, Miguel Rosado, Diogo Andrade, Joana Bolito, Albertino Miranda, Denise Pereira, Lucilina Freitas e Sara Lambeau. Obrigada também àqueles que estiveram por perto: Irene Rodrigues, Lourenço Basílio, Carlos Camacho, Paulo Barbosa, António Dantas, Marco Fagundes, Sofia Maul, Jorge Maggiore, Diana Serrão, Mário André, Ana Salgueiro, Pau Pascual Galbis, Carlos Nó e Silvio Cró entre muitos outros. Agradecemos à Natércia Xavier, em nome da Direção Regional da Cultura, e à Sandra Nóbrega e à Catarina Faria, em nome da Câmara Municipal do Funchal, por terem apoiado o projeto, sem o qual nada disto teria sido possível; ao Manuel Rodriguez e ao Eduardo Freitas pelo espaço e pelo apoio da PIPINOIR, Expressão Criativa, e ao Xarabanda pelo empréstimo de instrumentos, equipamento técnico e disponibilidade permanente! Stills de gravação escolhidos por Sara Rodrigues Fotografia de Rui A. Camacho
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